quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O Terramoto de 1755 em Fukushima


Não é possível evitar uma sensação de culpa quando apreciamos a beleza do Convento do Carmo. O edifício parece mais bonito e integrado na cidade em ruínas do que como uma estrutura íntegra. É nisto que penso enquanto sento-me num banco no Largo do Carmo a observar os claustros e as naves remanescentes do templo sagrado onde ficou encerrado o túmulo destruído de D. Nuno Álvares Pereira. Em 1755 um dos maiores terramotos da história causou a morte de dezenas de milhares de portugueses, principalmente em Lisboa, com a onda de choque inicial, as derrocadas e os desabamentos consequentes, os incêndios infernais que se seguiram, e um maremoto que finalizou a tragédia com notas apoteóticas de requinte.

Apesar de ter sido uma catástrofe menor na história geral das calamidades, este evento teve repercussões enormes. Está ligado ao surgimento da sismologia, assim como inquéritos filosóficos, que eclodiram com o choque dos homens perante o confronto com o mal sem explicação num planeta indiferente. As convulsões sociais e as mudanças políticas resultantes levaram à ascensão de uma figura - o Marquês de Pombal - e à imposição marcas indeléveis na história nacional. O Terramoto de Lisboa surgiu como o pontapé que derrubou a estrutura política podre e acelerou o início do declínio do Império Português.

Em 2013, tão próximos já de 2014, parece quase anedótico falar de um terramoto em Portugal. Um país de gente tão pacífica e inofensiva, sem catástrofes naturais recorrentes, sem criminalidade violenta, sem fauna e flora perigosa, sem terrorismo sectário ou outros fenómenos exóticos que causam tanta morte neste mundo. Mas aconteceu mesmo. O chão que estamos a pisar, aqui e agora, moveu-se. O chão moveu-se. A terra emitiu um som horrendo. O mundo abanou. O mar invadiu a terra. É afirmado que, como habitantes do mundo desenvolvido, tomamos demasiadas coisas como certas. É afirmado que não valorizamos o amor da nossa família, que não agradecemos aos anjos e santos pela comida abundante e pela água limpa, e que assumimos, de forma ingénua, que nada de mal nos pode acontecer. Pensamos que os acontecimentos das nossas vidas têm sempre explicação e são, por isso, previsíveis, através do prisma prático do senso comum. Mas eu não concordo com essa asserção. De todas as variáveis da vida, aquelas que consideramos como certas, seguras e previsíveis são as mais óbvias e passíveis de serem ignoradas. O chão não se move. Edifícios não caem. O mar não invade a terra. Todos nós, mesmo os ateus, vivemos com a noção inabalável de que existem certos aspectos divinos no equilíbrio inabalável da Terra. O sol, a lua, o céu, as montanhas, o ar. São apenas peças perfeitas de um cenário permanente.

Nas descrições oferecidas por sobreviventes do terramoto, e subsequente tsunami em Fukushima, mostram-nos que esse equilíbrio é instável. Alguns factos marcantes demonstram o que acontece quando o chão nos trai. Um dos sobreviventes, um homem de meia-idade, mencionou que a primeira coisa que notou foi a ausência absoluta de pássaros. Não consigo pensar num mundo tão estranho como aquele desprovido do chilrear adorável e irritante dos pássaros. O sobrevivente disse ainda que notou que não eram só os pássaros que faltavam. Era tudo. Não havia som. Não haviam sons claros e discerníveis. Não haviam máquinas, carros, passos, respirações, combustões, estalares, choques ou vozes. Não havia nada. Ele disse que, por momentos, pensou que era o último habitante da Terra. O pior, disse, é que ele não conseguia sentir nada. Ele tinha-se deparado com o maior dos horrores. Um evento causado pelas maiores magnitudes da Natureza. Mas ele não conseguia sentir nada, nem quando viu uma mulher a segurar o corpo inanimado do seu filho, nem quando começou a notar nos cadáveres, centenas deles, ou quando viu cães a comerem carne humana.

Quando o som voltou, as suas únicas manifestações eram gritos, sirenes, choros, explosões e pedidos de ajuda. Mesmo com esses sons de sofrimento, ele disse que não conseguia sentir nada, e que essa ausência acabaria por durar dois dias inteiros. Ele queria chorar ou pelo menos sentir um aperto no peito, um frio no estômago. Alguma coisa. Qualquer coisa. Era como se o seu cérebro não fosse capaz de processar emoções. Estava em choque, disse-lhe uma médica dos serviços de emergência, numa tenda improvisada de assistência hospitalar. Esse vácuo chegou ao seu fim quando, na fila do refeitório da tenda, uma menina perguntou-lhe queria passar à frente, visto ser mais velho do que ela. À sua volta, reparou que reinava uma serenidade forte e digna. O desespero tinha desaparecido. Ele recusou a oferta simpática da criança, dizendo não ter muita fome, e saiu da fila, para fora da tenda. Os pássaros tinham voltado. Eram poucos, mas suficientes para fazer com que o homem se ajoelhasse e, consolado, começasse a chorar sobre o chão que tinha-se movido. O futuro era incerto, mas, indubitavelmente, mesmo num mundo onde o próprio chão pode ceder, a vida continuava. Não era uma questão de escolha ou força de vontade. Simplesmente era.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Série "A Esquerda Portuguesa" - 2ª Parte - A Esquerda Estalinista


“Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes.” – Constituição de 1976 da República Portuguesa

“Socializar os meios de produção e a riqueza, através das formas adequadas às características do presente período histórico… e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem.” - idem

“O PCP é perfeito? Não. Nada é perfeito na construção humana. Mas é o mais próximo da perfeição.” – Honório Novo

As dúvidas abundam. Nem sei bem por onde começar. A tarefa é hercúlea, sisífica e ingrata. Não me agrada criticar de forma tão dura uma fatia assustadoramente significativa dos meus compatriotas. Também não gosto de bater em cegos, ou de cantar para os surdos, e muito menos de antagonizar os mudos. Cegos, surdos e mudos a liderarem cegos, surdos e mudos. No fundo, é isto que esta gente é. É a forma mais gentil de caracterizá-los. As outras formas envolveriam termos mais agressivos, como palavrões maliciosos, envolvendo as minhas dúvidas sobre a inteligência desta gente, e maledicências científicas, como as designações oficiais de doenças catalogadas pela psiquiatria, que envolveriam as minhas dúvidas sobre a sanidade mental desta gente.

Não sei se devo tratar o Partido Comunista Português como o habitat natural e único desta espécie muito exótica da Esquerda Portuguesa, ou se devo ignorar os pequenos fungos comunistas que vão a votos de quatro em quatro anos para receberem um certificado desaprovador da sua existência patética: o Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses/Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, o Movimento Alternativa Socialista e o Partido Operário de Unidade Socialista. Isto é gente que acha que o PCP faz parte dos “partidos do poder”, que acha que a sua forma ortodoxa de interpretação da doutrina marxista não passa de uma deturpação neoliberal de patifes capitalistas.

Se tenho as minhas dúvidas sobre a dissecação do PCP, imaginem as dúvidas que surgem quando me confronto com estes tumores sectários. Isto é gente inqualificável. A língua falha. Não há palavras, nem gestos. Por isso, no âmbito desta humilde análise, não serão mais mencionados. Consideremo-los por um instante e apenas um instante. Depois, a sua presença maniqueísta será levada pela brisa leve, como o ar fétido de uma flatulência discreta, que, depois de causar alguns segundos de sofrimento e riso nos presentes, nunca mais retornará para assombrar a consciência humana com a indecência do seu ser.

A intenção dos comunistas é clara. Infelizmente, eles não são tímidos. Eles não são discretos. Está logo ali, à mão, inscrita na sua marca registrada, a foice e martelo, cruzados, reminiscentes simbólicos do trabalho, num mar emblemático de vermelho. Quando iniciei o meu percurso académico, vi na Semiótica uma ciência oculta, uma corrente mística, digna de xamãs e astrólogos, virada para o seu umbigo cerimonial, e inútil na sua dissecação dos elementos básicos da comunicação. Agora, parece-me a ferramenta perfeita, algo que, curiosamente, é aquilo que uma foice e um martelo decididamente não são. O que é que diz sobre uma causa quando o seu logótipo consiste na exposição gritante de duas ferramentas agrícolas, quase obsoletas na sociedade moderna, cuja utilização ubíqua em tarefas de sobrevivência está restrita a países subdesenvolvidos, envolvidos em guerras e imersos em fome, e muitas vezes rendidos aos encantos enganadores dessa mesma causa? Eu digo-vos: diz muito. Essa simbologia revela-nos que a causa comunista existe para servir os interesses da causa comunista, e não para trazer ao mundo a utopia de igualdade e prosperidade que os seus manifestos fazem de tudo para pintar com pinceladas realistas.

Aqui reside a contradição mortal que destrói a legitimidade existencial deste movimento. A validade do comunismo já não existe, tendo sido anulada quando o mundo deixou de ser o lugar onde a vida era “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”. O mundo que levou Karl Marx e Friedrich Engels a dissertar sobre a crueldade do contrato capitalista, sobre a alienação individual intrínseca em sistemas de propriedade privada e sobre a escravidão salarial, foi, em grande parte, extinto pelas forças verdadeiramente revolucionárias do mercado, pelo seu poder incomensurável de catalisação de mudança positiva e pela sua potencialização avassaladora da liberdade individual. A poesia da relação entre a simbologia comunista e o lugar da ideologia no mundo de hoje é óbvia e a minha pena é que não seja igualmente óbvia para todos, especialmente para aquelas pragas egípcias que habitam em Setúbal, Lisboa e no Alentejo, e que continuam a achar, teimosamente, que a política é uma "luta", um empréstimo condicional é um "pacto de agressão", e que a tentativa de igualar despesas e receitas é a "destruição do Estado social".

Em outras palavras, o Jerónimo de Sousa há muito que deixou de ser o líder de um partido político com esperanças, mesmo que ténues, de chegar ao poder, mas sim o líder de um grupo de múmias acordadas que tenta, a todos os custos e sem se importarem em poluir o debate público com o seu bafo pestilento, manter os seus respectivos lugares de proeminência social e relevância mediática, e todos os tachos, benesses e privilégios que a sua condição de actores políticos acarreta. Mesmo que para isso tenham que evitar ao máximo afirmar que são comunistas, daqueles que apoiariam, nos dias de hoje, a União Soviética ou a China Maoísta, desde que isso permitisse a manutenção do seu estado de graça. Quando o PCP vai a votos, utiliza a designação mais simpática de CDU, a Coligação Democrática Unitária, uma entidade cuja nomenclatura tem tanto valor de aplicação prática como a “República Democrática do Congo” ou o “Ministério para a Suprema Felicidade do Povo”.

Gostaria muito de poder escrever aqui sobre os atributos positivos associados a este movimento político – boa música, boa erva e militantes femininas de beleza helénica – mas isso enfraqueceria a minha tese. Portanto aqui afirmo, sem quaisquer reservas, que ouvir um comunista discursar é o equivalente ao sofrimento sonoro que surgiria se um trio eléctrico baiano tivesse um filho com uma parada militar norte-coreana. Aquilo que ouvimos não faz sentido, não tem qualquer base factual, está completamente desligado da realidade, ignora décadas, séculos e milénios de história, fala de dignidade sem ter tido o trabalho de ver a sua definição num dicionário e, além disso, assustam-me. Aliás, aterrorizam-me.

Eles fazem um excelente trabalho em esconder as suas facetas mais perturbadoras. Em público, limitam-se a alimentar a impaciente besta mediática com soundbytes de indignação vazia. No Parlamento, dão soluções populistas e absurdas, desconectadas das regras da aritmética, como a revitalização do sector da construção civil. Eles reservam a loucura para os seus canais de comunicação oficiais, como a revista “Avante!”, onde recentemente li um artigo iluminado, escrito por um membro feminino da comissão do partido, em que escrevia, com a acutilância mordaz da tradição literária queirosiana e com a erudição isenta dos sociólogos portugueses, que os resquícios actuais do conflito coreano tem duas divisões claras que correspondem, de forma inequívoca, ao certo e ao errado. Um dos lados, localizado no norte e correspondente ao certo, é uma nação de paladinos do proletariado, que, depois da guerra, desenvolveram a sua indústria e garantiram um amanhã mais feliz aos pequenos norte-coreanos*. A outra nação, mais ao sul e correspondente ao errado, foi invadida pelo grande capital americano e retirou das mãos do povo o sonho de uma nação esfomeada, isolada e nominalmente comunista.

Sou suspeito, admito. Venho de uma família de talhantes minhotos, conservadores, católicos e amantes da sua propriedade, que considera como verdades absolutas, entre várias ideias, a de que, depois do Mondego, acaba a nação portuguesa, passando apenas a existir uma vasta planície de ninguém, feita de fogo e cinza, povoada por comunistas armados com engaços, ansiosos por nacionalizarem fábricas e erguerem punhos. Mas a Esquerda Estalinista não nega quem eles são. Esta análise é influenciada pela minha cultura, mas não é unicamente derivada por preconceitos ideológicos que daí poderiam advir. Eu limito-me a respeitar o poder básico dos números e estatísticas. A imprensa portuguesa é que parece ter-se esquecido. Eles olham para os comunistas com o fascínio com que os visitantes do jardim zoológico olham para um leão enjaulado, julgando ver nele um gatinho manso, ao invés de uma besta sanguinária. Esta benevolência interpretativa que a imprensa concede aos amáveis estalinistas, revela-se na ilusória, infeliz e falsa narrativa mediática que nos é oferecida para contextualizar qualquer acção do PCP: implantaram sozinhos a democracia pelo seu amor à liberdade e à pátria. Quarenta anos depois do 25 de Abril, os comunistas ainda mamam, afoitos e de bom grado, nesse seio purificador da revolução.

Para ser um comunista é necessário ser um fanático. É necessário estar disposto a ser um membro leal de um culto cujo rol de ideais tem a mesma validade que os sacrifícios humanos dos maias. É preciso também sofrer de amnésia seletiva e esquecer dos cinquenta milhões de chineses mortos no Grande Salto Adiante, dos cinco milhões de ucranianos mortos na Grande Fome e dos dois milhões de cambojanos massacrados pelo Khmer Rouge. Convém referir, que estes são apenas três exemplos de uma lista enorme de atrocidades, calamidades e monstruosidades facilmente associadas à irracionalidade ácida do comunismo.

Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. A estirpe comunista portuguesa não tem tamanhas ambições, concedo. Depois de falharem na implantação do sonho vermelho durante o PREC e o Verão Quente, os comunistas portugueses acalmaram, e aceitaram ocupar uma bancada traseira, onde os seus fartos rabos podem descansar sem se preocuparem com o aparecimento cruel de hemorroidas e as suas gordas bochechas podem produzir os sons da escandalização populista sem se preocuparem com a proximidade desarmante do mundo real. Enfim, eles são almas muito mais gentis, que encarnam aquele estado de espírito muito português: aquele medo recôndito de que alguém, algures, de algum modo, está a fazer de tudo para impedir-nos de sermos felizes.



*Literalmente: em média, os norte-coreanos têm menos 3cm-8cm do que os sul-coreanos. Este facto não está, de nenhuma forma, relacionado com o comunismo. É pura coincidência.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Orgulho Lusitano

O nacionalismo é um fenómeno peculiar. Como pronunciou Doug Stanhope na sua embriagada sabedoria, faz-nos odiar pessoas que nunca conhecemos e orgulharmo-nos de feitos que não são nossos. Seja dos golos do Ronaldo ou dos tipos que apareceram na Time por terem inventado um café altamente alcoólico, partilhamos todos, do mais ferveroso comunitário ao mais altivo individualista, uma satisfação mais ou menos acentuada pelas façanhas dos nossos conterrâneos. Há essa aura de irmandade entre o mais rico e o mais pobre, o marxista e o hayekiano, o portista e o benfiquista, o inteligente e o néscio. Num mundo em que as diferenças entre os cidadãos são, por ambas as partes, cada vez mais realçadas, este orgulho nacionalista, herança da vaidade colonial, tem um papel importante na agremiação do nosso povo.

Falo-vos do louvável nacionalismo lusitano numa semana em que me deparei na imprensa internacional com dois artigos relativos a esta histórica província que habitamos. O primeiro, publicado pelo NY Times, foi muito divulgado nas redes sociais pela analogia entre o declínio da população de burros mirandeses e a situação dos humanos seus compatriotas. Escusado será dizer que esta divulgação foi devidamente acompanhada de uma inevitável dose de indignação. Quem são os americanos para nos compararem a burros de carga?

Exacerbado nacionalismo a funcionar; entendo a revolta contra os termos depreciativos da comparação. É, à primeira vista, uma pressão demasiado forte na já aberta ferida de orgulho nacional. Eu próprio, confrontado com o título, expressei um esgar de dor na dita ferida. Uma vez consultado o artigo, anestesiei-me. A peça apenas reservava um parágrafo a esta comparação; todos os restantes exploravam exclusivamente a condição do burro. O burro animal, não o que acumulou orçamentos deficitários. Podem os críticos alegar que todo o texto é uma grande metáfora, banhada de um queirosiana ironia. A verdade é que esta só é detectada quando a carapuça serve. E esta carapuça tem o tamanho ideal.

O outro artigo que acima referi é do Le Monde, que alerto não ter o hábito de ler, por eu ter um vocabulário francês comparável ao do Marco Horácio a imitar o Bölöni, mas que consta na edição deste mês do Courrier Internacional. Esta peça, contrariamente à tendência dos artigos referentes a Portugal, é elogiosa do povo luso. Realça o artigo a resistência da população em cair na tentação natural em tempos de crise de se refugiar em perigosos extremos políticos. No cenário europeu actual, são exemplos incontornáveis a assustadora Frente Nacional de Marine Le Pen, o bizarro Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo e o violento Aurora Dourada de Michaloliakos. Os portugueses, louva o jornal, não têm caído nessa inclinação.

O periódico gaulês justifica esta aversão a extremismos com a história recente do país. Com os fantasmas ainda mornos do Estado Novo, a extrema-direita não tem lugar no debate político, quanto mais no hemiciclo. Ainda bem que assim é. O problema é que, resultado também desse repúdio traumático à direita (de significância tão ambígua que custa generalizar o termo), vivemos numa sociedade sindicalista que, compreensivelmente ou não, se dedicou a compensar magnanimamente, a qualquer custo e de forma precipitada, décadas de direitos negados.

O Le Monde destaca acertadamente uma resistência na viragem à direita radical; carece, no entanto, este artigo de uma referência importante. A guinada à esquerda só não foi acentuada porque ela já havia sido feita. Os partidos esquerdistas radicais de grande adesão não surgiram porque já cá estavam. E só a inabilidade política os impede de crescerem (a divisão do eleitorado que resultará da criação do Livre do Rui Tavares não ajudará).

De resto, esta referência ao novo partido, de que o artigo do Le Monde é omisso, é pertinente. O partido de esquerda que emergiu nesta crise não assume uma posição extremista, pelo menos na teoria. Surge, isso sim, para que haja uma alternativa de esquerda moderada ao arco de governação. Um partido à direita do PC e do Bloco, que nada terá de eurocéptico nem se limitará ao protesto gratuito. Um fenómeno exactamente inverso do resto dos países europeus. Se isto não é sintomático do nosso ponto de partida extremista, não sei o que será.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Depressões

Não quero entrar na celeuma que envolve as eventuais pressões sobre o Tribunal Constitucional, mas devo deixar um ponto que considero importante: a Constituição não nos foi dada por Cristo numa bandeja. Está longe da perfeição divina; é atemporal, radical e ambígua. O órgão que tem como função suprema defender este documento é intocável. A Constituição não o é. E mais do que não ser intocável, pode e deve ser discutida. Sendo as normas que nos regem enquanto comunidade, deve ser o assunto mais aberto à opinião pública sem que essa opinião, quando contrária, seja encarada como um atentado à democracia. Numa perspectiva contratualista, a Constituição deve, de facto, estabelecer os limites da acção estatal. Mas isso não parece ser considerado para os dois lados. A Constituição restringe o poder executivo por conceitos abstractos como igualdade, que geram discussões de sardinha de rabo na boca, e por políticas concretas, como a "gratuitidade" de certos serviços públicos. A constituição deve arbitrar a política, não fazê-la, e infelizmente tem funcionado como primeiro recurso da oposição que detém, essa sim, o poder legislativo.

Outra coisa que eu não entendo nestas acusações de pressões sobre o Tribunal Constitucional: se o órgão supremo da Justiça não consegue executá-la imparcialmente, e imune à opinião dos agentes políticos, o problema não está nas pressões. A separação de poderes, que tantas vezes é invocada nesta questão, não fica afectada com as considerações públicas dos políticos, acima de tudo porque essa posição das forças políticas relativamente a uma eventual decisão do TC é desde logo perceptível pelos espaços próprios de discussão, como o Parlamento. Nenhum político assumiu até agora uma posição nos media que não fosse por todos já conhecida. A própria declaração de Durão Barroso, pouco sagaz e compreensivelmente polémica sobretudo vindo de um compatriota, também não pode chocar quando considerarmos que é o líder de uma organização cujas directrizes foram já barradas pelo TC. Se assumir uma posição é pressionar, os pedidos de revisão são, desde logo, pressões declaradas. Já para não entrar por aqui, aqui, ou aqui.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Jotinhas

Se há poder verdadeiramente instalado em Portugal, esse poder é o partidário. Vivemos num regime constitucionalmente partidocrático e cujos resultados deveriam ser bem ponderados. A culpa da separação cada vez mais clara entre a classe política e a sociedade civil não se baseia apenas no cepticismo crescente da segunda em relação à primeira. De resto, esse cepticismo tem motivado até, em alguns sectores, alguma iniciativa política individual ou, se colectiva, apartidária. Mas os limites são deveras circunscritos. A melhor forma de fazer alguma coisa pelo bem público é a associação a um partido, isto considerando a centralização do poder em Portugal, e por isso desconsiderando a administração local como poder verdadeiramente relevante. Ainda que como independente, qualquer um que intente a ter voz parlamentar tem de escolher um alinhamento. Conscientes que estão os agentes políticos desta necessidade, criou-se nos partidos uma ascensão hierárquica quase maçónica.

Na sequência deste processo de promoção partidária, surgiram os jotinhas. Esta precoce espécie de diamantes governativos por lapidar ingressa nos partidos quando ainda é nova demais para cursos superiores ou para ter significativa experiência profissional. Nunca foi sua ideia adquiri-los: saberiam que o futuro era risonho em cargos públicos ou instituições municipais. Viveram sempre alimentados pela autêntica máquina de saquear os cidadãos em que se tornou o Estado. São dependentes desse saque e, como tal, serão sempre um obstáculo à reforma do mesmo, entretidos que estão a sugar esse delicioso seio.

Passos Coelho e Seguro são exemplos acabados dessa geração jotinha, que domina os partidos e consequentemente a política. Chegou a vez deles, que fizeram carreira sustentados pelos cidadãos, devolverem à comunidade as capacidades políticas adquiridas entrementes. O resultado, esse, é conhecido. Um primeiro-ministro com tanta sobriedade quanto covardia e incompetência; e o um líder da oposição que, de forma a não gastar muita tinta na sua óbvia depreciação, classificarei de insípido e perigoso. Com a primeira geração de políticos partidocráticos, Portugal enfrentou a bancarrota três vezes em menos de 40 anos. Com esta segunda geração, nunca sairá da bancarrota.

É este o fenómeno que temos perante nós: um processo em que o Estado utiliza o pretexto da boa intenção dissimuladamente socialista para ir aumentando e ir-se auto-alimentando, criando esta bola de neve burocrática que vai consumindo toda a economia. O problema é que o povo alinha nisto. Dizer mal do inevitavelmente corrupto poder público e dizer mal das gananciosas privatizações é uma escandalosa contradição, e os seus apregoadores têm de ser chamados à razão.

Esta ditadura de partidos e jotinhas tem uma consequência gravíssima última: permite aos partidos impor ao País os seus próprios deputados, contra a vontade dos cidadãos votantes. A democracia representativa será sempre corrompida por uma pornográfica limitação de escolha, que leva o problema principal-agente a um nível ainda mais preocupante: um nível em que as escolhas já estão feitas por nós há muito tempo, e em que o processo democrático se limita a criar a ilusão de que nós é que temos culpa, por termos levado os políticos mais incompetentes aos patamares que estes ocupam, num ininterrupto ciclo de conformismo.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Chico Fininho

Tenho evitado escrever sobre o papa Chico desde a sua ascensão, por não querer cair na tentação, sendo eu crítico da longa data da Santa Sé, de prender quem tem cão e prender quem não o tem. Afianço-vos agora que é com algum cepticismo que vejo o papa Chico tornar-se no Obama do mundo religioso.

A associação do Sumo Pontífice ao presidente americano é óbvia já que são, em termos de popularidade, duas rockstars. Uma já em declínio, que nunca mais conseguiu produzir um álbum à altura daquele que compreendeu o período de campanha das eleições de 2008; o outro cada vez conquistando mais fãs, movendo mais groupies, granjeando os mais descrentes corações.

Tudo começou logo após a sua eleição. Decidiu permanecer na Casa de Santa Marta em vez de se mudar para a habitual residência do papa. Mais: viajou de autocarro com os restantes cardeais, em vez de recorrer ao carismático papamóvel. Que humildade, que simplicidade profunda. Entre tantos outros notáveis actos de boa-fé, afagou agora um homem desfigurado que a ele se dirigiu. Um santo, apregoa-se, um santo tal e qual o seu homónimo.

Recentemente, o Papa Chico iniciou um conjunto de inquéritos a nível mundial para averiguar o que pensam os seus seguidores acerca de questões fracturantes que, historicamente, colocaram a Igreja num dos extremos do eixo. Essas questões incluem a homossexualidade, o divórcio e a contracepção, três conceitos que, directamente de palavras bíblicas ou por interpretação institucional e pessoal, têm sido condenados pelos fiéis. Esta medida foi acolhida como um acto de coragem e tolerância sem precedentes na história do Vaticano. Não questiono as boas intenções do papa Chico por trás desta ideia, o senhor parece ser de facto um tipo de genuína boa índole. O que ainda não percebi é se ele está ciente da contradição em que se está a meter.

A crença num certo movimento religioso, e portanto nos seus princípios, está para além das opiniões ponderadas e pessoais dos elementos da seita. A crença é, na verdade, a antítese dessa ponderação racional. Questionar os dogmas católicos, enquanto principal representante dos mesmos, põe em perigo a sua credibilidade perante os humanos e, já agora, perante o Pai que já proferiu a sua opinião sobre os assuntos em questão com o intuito, julgo eu, de esta ser respeitada.

Partindo da premissa que os católicos acreditam que as regras bíblicas provêm de poder divino e devem ser linearmente respeitadas, questioná-las é, na prática, pôr em casa a sua deidade. O que é um sinal de saudável iluminismo; mas representa, para a significativa população católica, uma grave contradição. É acreditar em Deus, seguir a sua palavra mas, quando esta parece pouco ponderada e tolerante às luzes do novo século, fazer uma reunião de grupo para decidir se aquilo que Deus ensinou é mesmo para cumprir. Um acto que, para quem acredita nos poderes omnipresentes e castigadores de acção divina, é de um desassombro louvável.

A não ser que, e esta é a hipótese mais provável, o papa Chico saiba, num obscuro resquício da sua consciência, da farsa de que é líder. Que os humanos, mais do que aquele livro que ele jurou seguir e proteger, devem ser aqueles que decidem o seu destino, as suas normas, os seus direitos e deveres, as suas circunstâncias.

Que a palavra de Deus nem sempre (ou nunca) é seguida da forma fiel que o seu carácter divino exigiria já é consabido. Que o principal representante da palavra de Deus seja o primeiro a promover um processo que a questiona pela raiz é a prova final de que, até dentro da Igreja, os dogmas podem ser ignorados quando estão em causa interesses térreos mais importantes. Entre os quais está, naturalmente, a popularidade do Chico.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A culpa é do Baco

Antipatizo, por natureza, com qualquer tentativa de desculpabilização baseada no álcool consumido. Não porque o álcool não possa, de forma directa e inequívoca, levar a más decisões. Todos teremos, mais tarde ou mais cedo, o insuportável sentimento de vergonha na manhã seguinte a uma piela mais desacanhada. Porém, essa justificação tornou-se tal epidemia que, ao mínimo sinal de alegria, as pessoas começam a pensar fazer tudo aquilo que por vergonha social não se atreveram antes a fazer. À desinibição junta-se a certeza de que qualquer acto irreflectido, que em condições normais pudesse ser sujeito a inquisição moral pessoal ou alheia, é justificado como consequência do copo. A culpa nunca é minha, é do Dionísio. Muitas vezes esta justificativa aparece acompanhada de uma ainda mais incomodativa: a da memória. Mais uma vez, reforço: o álcool tem inegáveis efeitos na memória de curto prazo. Esse efeito, porém, só é suficientemente voraz em ebriedades tão profundas e incapacitantes que nem os actos mais horrendos podem ser cometidos, por falta de coordenação motora. Pormenores podem desaparecer com a urina que deixámos num beco na noite anterior; grandes actos de vexame muito raramente o são.
Quando o acto desculpabilizado é o consumo de drogas pesadas, e o autor da desculpa um importante detentor de um cargo público, esta minha posição é sublimemente suportada. Além das semelhanças físicas com o actor e comediante Larry Joe Campbell (que, apesar de completamente alheias ao assunto, tinham de ser mencionadas), o mayor de Toronto Rob Ford tem outro motivo para ser referido, ao admitir ter consumido crack quando já desempenhava o cargo. Posteriormente, ao tentar amenizar o seu erro, conseguiu piorá-lo: «Yes I have smoked crack cocaine. But no, do I, am I am addict? No. Have I tried it? Probably in one of my drunken stupors, probably approximately about a year ago».

Partindo da mais desapropriada desculpabilização política desde que Paulo Portas disse não saber do corte na TSU, aqui partilho um artigo do cracked.com, um site que merece ser também ele divulgado, pelo atractivo dos assuntos e o aprimorado humor da escrita: as cinco desculpas mais estúpidas alguma vez proferidas num escândalo político.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Natal é quando este homem quiser

Desafio o leitor a encontrar um cidadão português que anualmente não manifeste, enfadado e indignado, o seu descontentamento com a proliferação de enfeites de natal antecipados. Culpa-se a sede capitalista, culpam-se os gananciosos argentários que exploram os indefesos consumidores que, cegos pelos luzidios ornamentos, começam mais cedo a encher os sapatinhos dos seus entes queridos.

A Venezuela, baluarte da experiência socialista no sul das Américas, foi mais longe. Nicolás Maduro já recentemente mostrara ser um homem de inabalável crença e limitado intelecto ao afirmar que o seu falecido antecessor havia reencarnado na parede de uma estação de metro. O espírito de Chávez não é, porém, o único a surgir sem aviso. Também o espírito natalício foi evocado prematuramente pelo presidente, abusando desde já de um poder supremo que, se bem se recordam, já requereu e para o qual aguarda ainda aprovação. Mas ao contrário do que sucede no plutocrático mundo ocidental, em que esse espírito emerge compurscado pela febre do capital, celebrar-se-á antecipadamente por esses lados o nascimento do Salvador graças à grave crise económica e social que o país atravessa e à injecção de alegria que a época natalícia provoca na população.

Já se desconfiava há muito, desde a crise resultante da sucessão, da falta de argúcia do líder da Venezuela. Contudo, havia que dar o natural benefício da dúvida: quem sucedesse a Chávez não poderia ser pior. A vida, essa, ri-se destas presunções, e brinda os venezuelanos com uma peça de um ainda mais elevado quilate, e de uma sabedoria ainda mais brilhante do que os enfeites adornantes do seu pinheiro que, com certeza, já enchem o seu lar de um necessariamente extemporâneo espírito natalício.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Dreamer

A figura de John Lennon está envolta num misticismo ímpar no moderno mundo artístico. Muitos outros músicos foram encarados como estando espiritualmente acima dos pífios mortais: Elvis Presley e os obsessivos mitos da sua sobrevivência são um exemplo incontornável. Mas nenhum se aproximou tanto do estatuto de Jesus Cristo do mundo moderno como o Beatle.

A figura física ajudou. As semelhanças com a imagem que os frescos renascentistas disseminaram como sendo do nazareno são impossíveis de ignorar. Está lá tudo: os longos cabelos castanhos, o olhar firme mas terno, o corpo delgado. Até arranjou uma mulher de outras terras para reforçar a já inevitável associação. Mas estas semelhanças nunca seriam suficientes para esta profana comparação se Lennon nunca tivesse composto aquela mensagem de paz, de forma cantada, e não pregada, mas não por isso menos popular. A Imagine, apesar de renegar a mensagem religiosa (ou pelo menos as consequências negativas que dela advêm), tem com o discurso cristão de harmonia e perdão denominadores comuns incontornáveis.

Outro factor indispensável à sua canonização foi o assassinato. Armado de um revólver na mão direita e de Salinger na esquerda, Mark David Chapman viu na raiva juvenil de Holden Caufield a inspiração para abater um ícone das raízes pacíficas da sua geração. Esta martirização foi exactamente o que faltava na consagração de Lennon como venerado semi-deus.

Mas a realidade é bem mais vil do que a nossa propensão para santificar ídolos nos permite conceber. John Lennon, que fez o mundo utopizar um primaveril mundo de concórdia, batia na mulher. Nas mulheres, para ser mais preciso. A sua primeira mulher Cynthia, mãe do seu filho Julian, e a sua musa Yoko Ono foram ambas vítimas de violência doméstica. E já que referimos o rebento, é pretinente acrescentar que, numa entrevista dada já após a morte do progenitor, este confessou que Paul McCartney sempre foi mais um pai para ele que o próprio Lennon. Não podemos condenar o petiz; além da brutalidade física que o ícone da paz reservava para as companheiras, brindava regularmente Julian com insultos frutos do ressentimento provocado pela sua concepção, que obrigara Lennon a assentar raízes numa altura da sua vida em que a rotina de casado não se enquadrava no seu documentado narcisismo.

Outras contradições valem a pena serem referidas. A opulência financeira, que publicamente condenava, era contrariada pela vida de milionário que ostentava (um pouco ao estilo Floribella, portanto). Repudiava religião, mas era um homem altamente espiritual. Fazia meditação, mas só atingia a paz de espírito abusando fisica e psicologicamente da sua família.

Não é meu intento, ao partilhar estes factos, denegrir de forma gratuita a figura de Lennon. Admiro de resto, inevitavelmente, o artista. Além de inspirado compositor, tem um timbre de voz que parece reflectir a extravagância e multiplicidade do seu carácter: tanto nos encantou com a brandura de Across the Universe como com a deliciosa aspereza de Yer Blues, passando pelo tom mecânico da psicadélica I am the Walrus e a voz descontraída e compassada em Come Together.

Quero, ao partilhar estes sórdidos pormenores da vida pessoal de Lennon, exemplificar que é perigoso desumanizar os ídolos. Já nem quero referir as eventuais consequências de conceptualizarmos a existência de seres humanos perfeitos, e do que isso faz ao frágil ego de uma população consciente dos seus pecados. Apenas me insurjo contra a injustiça em si.

Lennon é colocado lado a lado com Malcolm X, Mandela, Ghandi ou Martin Luther King como personalidades que lutaram com as suas armas contra a desigualdade, a guerra e a discórdia. John Lennon merece figurar nos anais da história como um dos músicos mais inovadores e influentes do século XX. Mas nunca como um candidato póstumo a Nobel da Paz. Exceptuando, talvez, no lugar de Obama em 2009. Verdade seja dita: Lennon surrava nas companheiras, mas nunca bombardeou um país.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Série “A Esquerda Portuguesa” – 1ª Parte – A Esquerda Ilustre


“Eu gostaria que ele (António José Seguro) fosse mais activo, mas ele agora, há pouco tempo, até tem-se portado muito bem, na medida em que tem tido um comportamento em que o Partido Socialista está à andar para a esquerda, como deve ser. Como aliás é o Partido Social-Democrata. O Partido Social-Democrata sempre foi um partido de esquerda com o Sá Carneiro. É por isso que mais de metade ou dois terços do Partido Social-Democrata não está com este Governo. “

“Por que a América saiu da crise? Porque fabrica moeda. Quando o Banco Central Europeu fabricar moeda, é evidente que tudo isso passa.”

“Sou político. Não sou homem de negócios.”
– Mário Soares

É uma história que se repete nas refeições familiares em todo o mundo desenvolvido. Os protagonistas desta história são os pais e uma criança. No prato do rebento é possível observar a materialização do empreendimento materno de oferecer uma refeição completa, nutritiva e marginalmente saborosa (nessa ordem de importância). A criança, no entanto, desconfia das boas intenções da progenitora e vê nas ervilhas, nos brócolos e no repolho, uma tentativa chocante de envenenamento. A criança come de bom grado o arroz, as batatas e a carne, mas os legumes e os vegetais, esses desgraçados, são postos de lado, descartados, escondidos debaixo do arroz e inseridos furtivamente num guardanapo, que é enrolado e colocado no bolso, para mais tarde ser sumariamente despejado numa sanita.

Esta é uma situação recorrente ao longo da infância. Todos os dias é uma batalha. Há choradeira e birras. Os pais continuam a insistir nas histórias das vitaminas e nas sagas do crescimento. A criança continua a tentar fugir do horror gustativo que são as couves-de-bruxelas. Às vezes, tudo acaba em palmadas. Noutras ocasiões, a criança é enviada para a cama com o estômago vazio. Os pais sentem culpa, pois as tácticas mais cruéis não dão resultado. Então eles tentam apelar à razão e contam à criança como em todo o mundo existem meninos e meninas a passar fome e, por isso, desperdiçar comida não é apenas um pecado cometido perante a entidade invisível e barbuda dos céus, ou um crime perante o seu próprio corpo, mas uma crueldade perante seres inocentes exactamente iguais a ele. Os pais julgam ter acertado na mudança de estratégia. A crueldade e a rigidez dão lugar ao apelo à empatia infantil. O que escapa aos pais, devido ao efeito ofuscante do amor, que nesta instância tem uma função semelhante a um par de faróis ligados na sua variação máxima, é que as crianças são, em certa medida, uns pequenos sociopatas. Eles têm a capacidade alarmante de serem alheios ao sofrimento dos outros, inextricavelmente absortos nos seus próprios umbigos. Não podemos culpar os pais, a quem é quase impossível convencer de que o sangue do seu sangue não é o ser mais especial do mundo, nem podemos culpar a criança, cuja curta existência apenas consistiu num processo prazeroso contínuo de saciação de todas as suas necessidades, e dificultou assim a formação completa de um sistema de empatia racional e emocional.

O que se deve retirar desta história é que os conflitos nunca devem ser simplificados. Devemos sempre abordá-los com tacto. A Esquerda Ilustre, sobre quem quero aqui dissertar, vive neste dilema pedo-leguminoso. Não podemos culpá-los sobre quem eles são. Não podemos limitar a crítica a uma série de ataques pessoais ou à expressão de uma discordância ideológica com raízes técnico-científicas. A existência da Esquerda Ilustre é, acima de tudo, uma tragédia grega clássica. É a subjugação da vontade humana aos caprichos do destino. É triste e desconcertante. A genética e a cultura conspiram para determinar os fenómenos sociais e o papel que me proponho é o de um espectador interessado que pretende dissecar estas duas vertentes, isolar relações de causalidade e, como não podia deixar de ser, especular. Apenas é possível falar sobre a Esquerda Ilustre portuguesa tendo a noção da sua existência trágica neste dilema fatalista. A Esquerda Ilustre tem um passado, que não pode ser negado. A Esquerda Ilustre tem um presente, que deve ser escrutinado objectivamente. A Esquerda Ilustre tem um futuro, mas não tem futuro, algo que será evidente, se aceitarem os meus argumentos, pois aqui proponho que esse futuro deverá consistir num declínio gradual e cruel, que, se tudo correr bem, acabará numa queda repentina até o eco do fundo da irrelevância no poço do obsoletismo e um transferência habitacional para o parque eterno das mutações socioculturais falhadas.

O princípio desta tragédia tem o seu início onde todos os eventos tendem a começar: no final de outra tragédia. O choque do regicídio que pôs fim a oitocentos anos de monarquia, o caos funesto da Primeira República; a herança traumática de quarenta anos de ditadura moveu, talvez de forma irremediável, o centro de gravidade da política portuguesa para a Esquerda. Saímos debaixo do silêncio do manto real, passando para o afago seco da mama republicana, encontrando abrigo na jaula da obediência, onde até hoje nos mantemos. Os nossos partidos, nas suas diversas emanações do espírito nacional, são dessa forma partidos socialistas de um espectro fenomenológico variado, que inclui correntes tão díspares como a social-democracia benigna, o socialismo nominal, o marxismo açucarado, maoísmo depravado, o trotskismo chique e o estalinismo ortodoxo. Dando o nome aos bois, a Esquerda Ilustre aglomera fatias significativas do Centro Democrático Social, grandes fatias do Partido Social-Democrata e quase a totalidade do Partido Socialista.

É a esquerda que pensa que é direita, a esquerda que tem vergonha da direita e a esquerda que sabe que é de esquerda. Esta é a esquerda das falácias lógicas, dos enviesamentos ideológicos, das distorções históricas, das narrativas convenientes e da incompreensão generalizada da realidade. A esquerda que capturou o imaginário ideológico português. A esquerda que idealiza a natureza humana e ignora o mais básico senso comum. É a ideologia maligna do egocentrismo e da prepotência. É a ideologia dos que vivem sob a ilusão de que são agentes messiânicos da mudança, os grandes manuseadores da alavanca económica e magnânimos guardiões dessa entidade abstracta nociva que é o Povo. São os que vêem o país em chamas e ainda questionam se um pouco de água é, de facto, a melhor solução. São os que pensam no mercado como um mal necessário, uma droga a ser usada com moderação, como se fosse possível combinar o melhor de Karl Marx com o melhor de Adam Smith. Nas suas cabeças, eles estão dispostos a atirarem-se no lamaçal e a deitarem-se com os porcos capitalistas, mas apenas para realizar a Obra e para alimentar o povo. O que eles não entendem é que, pelo menos em Portugal, é impossível conciliar o liberalismo com o socialismo. Um dos lados tenderá a prevalecer nesta dialéctica e, ao contrário do discurso vigente, quem tem vencido é o socialismo da Esquerda Ilustre.

Este socialismo comete o erro de simplificar a análise da natureza do Homem. A Esquerda Ilustre, como toda a Esquerda, julga que a acção correcta é valorizar o colectivo. O erro é julgar que o colectivo é definido por laços ténues de patriotismo e civismo, ao invés dos laços inexoráveis do afecto e do amor. Na realidade, os adultos não passam de uma continuação racional da adorável síndrome de sociopatia infantil. O amor ensina a sacrificar a individualidade em prol do colectivo mais próximo, mas a Esquerda Ilustre pensa que é possível pegar nesta dinâmica e aplicá-la no Povo, ignorando os instintos mais básicos do Homem. Os mesmos instintos que fazem com que o mercado livre funcione. Os instintos que deram ao Homem as ferramentas para acabar com a existência miserável, bárbara e curta das Cavernas e iniciar a vida livre, longa e gloriosa das Cidades. Apesar de ser a associação miraculosa do mercado livre que alimenta o mundo, a Esquerda Ilustre não hesita em cuspir nesse prato. O mercado livre e o liberalismo são os bodes expiatórios eternos, que criam, inovam e transformam como forças sem paralelo histórico, mas são crucificados na praça pública e saqueados pelo aparelho socialista, com a justificação absurda de que não são forças perfeitas. Nessa lógica imperativa da Esquerda Ilustre, uma crise financeira não é uma ocorrência natural das acções imperfeitas de seres imperfeitos a actuarem livremente no mercado livre. As crises financeiras são o resultado de um sistema maligno que dá demasiada liberdade aos selvagens do capital e, portanto, cabe ao Estado, na sua infinita e inquestionável perfeição, rectificar a acção do ultra-neoliberalismo.

Toda esta teorização apenas é possível devido às mentes brilhantes responsáveis pela criação dos diversos partidos que se inserem na Esquerda Ilustre. Os criadores dos partidos eram, maioritariamente, homens provenientes de famílias da classe média e alta, com estudos superiores, inseridos num país pobre com uma população com níveis de escolaridade baixos ou inexistentes. São homens que tiveram a sorte de viajar e conhecer as sociedades livres dos outros países europeus. Essa existência criou um juízo natural de superioridade perante o Povo - uma entidade que já era rebaixada e contida pelo autoritarismo do Estado Novo. Dessa forma, esses homens sentiram-se qualificados para libertar a nação e proteger o Povo. Eles frequentaram o ensino superior e viveram o início da idade adulta no meio da glorificação dos valores associados à Esquerda durante a Guerra Fria. Eles observaram a acção diabólica dos imperialistas americanos contra as diversas revoluções socialistas espalhadas pelo mundo. Eles ficaram chocados com o assassinato do Che Guevara e apaixonaram-se pelo mito do mártir. Eles gostaram da narrativa de homens predestinados a guiarem o Povo. Eles queriam a glória da revolução explosiva, que é muito mais divertida e excitante do que a cautela conservadora. Eles preferiram o encanto morno dos sonhos ao frio desapontante da realidade. O confronto eufórico ao invés da discussão faseada.

No entanto, estes não eram homens estúpidos. Eram homens que sabiam que o mercado livre funcionava, mas que se deixaram seduzir pelo fascínio entorpecente do poder. Eram homens que sabiam que a melhor forma de terem o seu momento de glória era deixar o capitalismo funcionar como uma espécie de excepção à regra socialista. Eram homens que sabiam que, depois do fascismo e da monopolização da narrativa de luta pelos comunistas, a única forma de ganhar eleições era saber dosear a retórica. Mas estes não são homens dados à causa. São mártires que não querem ser martirizados. Cristos que não querem ser crucificados. São homens que sabem apreciar a vida. Gostam de bons carros e de boa comida, de relógios caros e de fatos que assentam na perfeição. São os homens que sabem que, quando a morte bate à porta, a melhor coisa a fazer não é esperar na fila misericordiosa dos hospitais públicos, mas sim ficar nas mãos da excelência expedita do sector privado. Quando o pai da Esquerda Ilustre, Mário Soares, teve uma “indisposição”, ficou internado no Hospital da Luz, um centro médico privado de prestígio. Quando a Presidente brasileira, Dilma Roussef, teve cancro, recebeu o tratamento no Hospital Sírio-Libanês, um dos melhores hospitais privados da América Latina. O ex-presidente brasileiro, Lula da Silva, recebeu tratamento no mesmo hospital. O antigo presidente paraguaio, Fernando Lugo, recebeu tratamento para cancro no mesmo hospital brasileiro. Quando o falecido presidente argentino, Nestor Kirchner, foi diagnosticado com cancro, recebeu o tratamento, no Sanatorio de Los Arcos, um renomado hospital privado argentino. O presidente do Equador, Evo Morales, recebeu tratamento para cancro numa “clínica privada de Cochabamba”. O único que tomou uma conduta diferente foi Hugo Chavez, o falecido presidente venezuelano, que recebeu tratamento para cancro nos famosos hospitais públicos de Cuba, de forma a manter-se em sintonia com os ideais da revolução bolivariana. Assim como Hugo Chávez, os líderes da Esquerda Ilustre sabem que é o populismo que ganha eleições mas, ao contrário de Hugo Chávez, eles sabem que é a hipocrisia que salva vidas.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Hiato estival









Nos próximos 10 dias os autores do blog estarão de férias, com o primacial propósito de encontrar Fernando Seara em terras de Sintra. Que seja possível, retornados, fazer uma composição imagética menos alucinada sobre a actualidade política nacional.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Não tem nada a ver com o Governo



Uma boa notícia: a Biblioteca Nacional Digital tem uma nova interface. A ocasião é válida para proceder à sua divulgação. A BND comporta um considerável número de obras disponíveis para consulta em pdf, trespassando os diferentes períodos da literatura portuguesa, em grande parte dos casos com edições originais ou de época. Vale a pena.

Cada um vai realizar diferenciadamente a sua pesquisa, embora acredite que quase todos acabem, mais cedo ou mais tarde, por chegar a Pessoa. Também o fiz, evidentemente. E, embora não precisando, fica o seguinte link, directamente da pena do supra-Camões, como exemplificativo residual das pérolas às quais é possível aceder do espólio cultural lusitano: http://purl.pt/13962

sexta-feira, 12 de julho de 2013

O Estado das coisas




Findado o período de indefinição política, e proclamada a fórmula semi-presidencial de “salvação nacional”, de Aníbal Cavaco Silva, fica como consolo Paulo Portas não ter sido presenteado pela descarada e chantagista manobra política que o seu pérfido e ungulado espírito desenhou, com o país pelo meio. A imprevisível decisão do Presidente da República tem como característica deixar, sem excepção, toda a classe partidária defraudada, com o acordo de PSD e CDS chumbado, o PS sem as eleições legislativas antecipadas que queriam simultâneas com as autárquicas, e BE e PCP arredados de equação. Simbolicamente reconfortante, mas insignificante.

Revolve a associação política do PS ao memorando, furtando outra tentativa de ilusionismo despudorado, tentar fazer por creditar que não há relação alguma entre a carga fiscal que é necessária actualmente e as expansivas despesas conducentes a Portugal ficar num estado de insolvência, e dependente de financiamento externo, bem como, abstracta e sistematicamente, que Matemática é tão elástica quanto um jovem chinês de 16 anos e que a palavra crescimento é o Wingardium Leviosa da teoria económica.

Do que resta da coligação é fácil de falar. O mar de contradições é grande e as feridas ululantes. É um acto de fé poder acreditar que uma coligação que durante dois anos foi publicamente disfuncional, sendo a sua existência ameaçada pela demissão do líder do menor dos partidos, transfigure-se e passe a ser articulada e eficiente quando afinal somente se levou um puxão de orelhas pelo meio. E quando o que mudou é o seguinte: fica o partido socialista vinculado, nos próximos episódios saberemos em que dimensão, e como Ministro das Finanças sai Vítor Gaspar para entrar Maria Luís Albuquqerque, nada menos que a nomeação que impeliu Portas a importar para a política o estilo de Francesco Schettino; coincidentemente, nem o povo português viu com bons olhos a obediência de Portas à sua consciência, nem o mundo em geral ficou esperançado na espécime humana com a atitude do capitão do Costa Concordia. Relativamente ao que seria premente verdadeiramente debater, de resto, o paquidérmico líder do CDS tem em mãos a reforma do Estado, e já deveria ter apresentado um documento a tal respeito no mês passado. Coisa pouca e irrelevante, adiemos a discussão, e só se nos recordarmos de a fazer.

De todas as contradições, a maior será, efectivamente, termos este cocktail digno de um bar de Pedrógão, sob a égide semântica da estabilidade nacional, quando foi a própria coligação a definitivamente comprometê-la. Não pretendo retirar-lhe as suas virtudes. É custoso vê-la imprudentemente desconsiderada e reduzida à força de uma frase por ser tão obviamente necessária numa altura como a actual, de lamentável perda de soberania, ainda que seja algo ao qual a masoquista democracia portuguesa, perfeitamente descritível como um viciado com problemas de reabilitação, pareça começar a estar habituada.

Hoje houve debate parlamentar sobre o estado da Nação. Como em qualquer parlamento que não sabe separar o particular do geral, nem reparar que infelizmente os nossos fatais problemas vão muito além da crise de meia-idade de Portas, discutiu-se o estado do Governo. Oremos, irmãos desafortunados.