"Hoje é dia 21 de outubro de 2008. Estou a beber chá.
O meu marido anda lá fora, no quintal. Na paisagem imóvel da janela,
uma brisa ligeira nas folhas mais altas, vejo-o às vezes. Furtivo, o meu
marido passa com a pá, ou o ancinho, ou a mangueira, ou a tesoura de
podar. Na nossa casa, os catálogos de jardinagem terminam sempre como
leitura de casa de banho. O meu marido anda de botas e chapéu. Não há
sol, mas aquele é o chapéu da jardinagem. Também as calças dobradas na
canela e as botas. Agradeço a Deus pela jardinagem. Obrigado, Senhor,
pela jardinagem. O meu marido precisa de distracções. Não lhe chega a
televisão, adormece. O meu marido é doente cardíaco. O vidro da janela é
grosso e eu ouço mal. Ouço bem um apito fininho, constante, branco, uma
linha, ouço mal tudo o resto. O vidro da janela, eu ouço mal, mas sei
que o meu marido está a assobiar. As pequenas plantas fazem-no feliz.
Actualmente, o meu clitóris não é mais sensível do que qualquer outra
parte do meu corpo. É feito de pele, como os meus ombros, cotovelos,
joelhos. Creio que endureceu. Ainda é de tarde, são quase cinco horas,
mas já se sente o início da noite. Aqui, nos arredores de Reggensburg,
há pássaros que só aparecem a esta hora. Não sei porquê, alguém deve
saber. São pássaros pequenos que fazem barulho. No passado, o meu
clitóris deu-me grandes alegrias. Marcou o meu epicentro. Sou uma
mulher, não deixei de ser uma mulher, mas agora tenho outros interesses.
Não sei ainda quais são. Talvez a mágoa. Talvez a mágoa seja agora um
dos meus interesses. Presto bastante atenção à mágoa, é certo. Neste
verão que terminou, parecia-me que a mágoa tinha um cheiro entre os
primeiros instantes de cada dia, uma nesga de luz matinal na janela do
quarto. O meu marido na cozinha, acordado há horas, as chávenas a
chocarem umas nas outras, e eu a decidir se estava acordada, se era
outra manhã, se queria outra manhã, acordar, e a parecer-me que a mágoa
tinha um cheiro. O meu marido nunca se apercebeu. O meu marido
esqueceu-se de tocar-me há talvez quinze, dezasseis anos, nunca mais se
lembrou. Em Fevereiro, faço setenta anos. Esta parte do ano, outubro,
ficou sempre ligada na minha cabeça aos outubros de quando era
adolescente e ia para a escola. Na minha imagem mental dos meses, agora
parece maio. Há cinco meses, em maio, eu ainda estava chocada. Ontem, ao
lavar-me, passei a mão pelo clitóris e, instintivamente, admirei-me.
Por instantes, pensei que pudesse ser uma verruga, um sinal, um caroço.
"um caroço deste tamanho"
Os arredores de Reggensburg têm asseio, os muros estão sempre
acabados de pintar. Temos vizinhos a boa distância. Gosto do vento,
mesmo daquele vento frio a meio do inverno. Reggensburg fica a cerca de
225 quilómetros de Amstetten. Nunca fiz essa viagem, nem para um lado e
nem para o outro. Quando saímos de Amstetten, fomos viver para Dortmund,
ficámos lá dez anos. Depois, fomos para Weimar, ficámos lá dois anos,
até o meu marido se reformar. Podíamos ter procurado casa em qualquer
lado. O meu marido insistiu na Baviera porque ficava perto da Áustria,
acabamos por concordar com Reggensburg. Quando pede alguma coisa, o meu
marido gagueja. Às vezes dizia: Amstetetetetetten. Sozinho, planeava
fins-de-semana em Amstetten. Dizia: vivemos cinco dos nossos melhores
anos naquela cidade, porque não queres voltar? Eu começava por negar que
não quisesse voltar. Depois, inventava desculpas sem tentar sequer
fazer sentido. Não sei o que ele pensava de mim. Até podemos ficar no
teu hotel, dizia o meu marido, sem saber o que dizia. Literatura.
Adorava que o meu marido gostasse de ler. Tenho a certeza de que
adoraria os russos: Tolstoi, Dostoievski, Gogol. Ah, Gogol. Quando quis
trabalhar, o meu marido conseguiu-me uma posição a gerir uma pousada
quase no centro de Amstetten. Após uma semana de serviço, meados de
setembro, o Josef possuiu-me na cama dupla do quarto 28.
Sempre usámos este verbo um pouco antigo, talvez um pouco livresco,
século XIX. Quando o Josef começava a rosnar, eu dizia-lhe: possui-me,
possui-me. Tenho de falar dos seus olhos azuis. Os olhos azuis do Josef
brilhavam, seriam suficientes para iluminar uma sala. Não estou a
exagerar. Ou talvez só um pouco. Quando o Josef me sorriu, me tratou por
menina, quando me apontou o olhar cheio de entoações, desfiz-me
invisivelmente. A partir daí, tratou-se de seguir um sentido. Às vezes,
quando deixávamos cair a cabeça sobre as almofadas da cama, eu ficava a
fazer-lhe festas no pequeno bigode colado aos lábios. Não era ridículo.
Eu sorria, enquanto a nossa respiração abrandava ao mesmo tempo. Depois,
ele olhava para mim e sorria também. O Josef sabia sorrir. À noite, o
meu marido contava-me todos os pormenores da vida dos seus colegas, mas
eu não o ouvia. O Josef gostava de sexo de pé. Eu inclinava-me na
direcção da janela e ele ficava por trás, apreciava a paisagem. Em
certos assuntos, muitos, eu considerava o Josef um poeta. Amstetten era
uma cidade sem sobressaltos, as campainhas das bicicletas, as estações
do ano nos dias certos. O Josef tinha umas pernas firmes, que eu gostava
de apertar no interior das minhas.
Quando estava bom tempo, aos sábados, o meu marido e eu fazíamos
piqueniques. O Josef tinha cinquenta e oito anos, mais quatro do que eu,
e bastava que me tocasse com um dedo. Se nos cruzávamos na rua, eu
tremia. Ninguém podia suspeitar. Ele sorria sem olhar para mim. Uma vez,
estava num restaurante, e o meu marido perguntou-me: estás com frio?
Era o Josef. Quando ganhei coragem para olhar melhor, não era o Josef,
não era sequer parecido, mas tremi, não consegui controlar-me. Quando o
Josef punha a cabeça no meio das minhas pernas, eu fazia-lhe festas no
cabelo. Havia semanas em que nos víamos duas vezes, três vezes, havia
semanas em que não nos víamos. Dependia de muitos factores. Conheci o
Josef quando tive aulas de dança, salsa. Estive em três aulas. Depois de
conhecê-lo, desisti. Deixei de ter tempo. Precisava de todos os
instantes para pensar nele.
O meu marido estava muito triste na noite em que me contou que
tínhamos de partir para Dortmund. Eu disse-lhe algumas frases
inacabadas, palavras incompletas. O meu marido disse: pois é. O meu
marido nasceu na Saxónia, a meia dúzia de quilómetros de Dresden e, no
entanto, já tinha adoptado um sotaque austríaco. Artificial, enjoativo,
mas sentido. O meu marido é obediente. O Josef tinha verdadeiro sotaque
austríaco, claro. Os seus érres davam-me tesão. Durante anos, eu corava
só de lembrar-me dos seus érres. Nessa noite, o meu marido tinha a
cabeça entre as mãos, a realidade. Eu não podia fazer outra coisa. Desde
esse dia, até à partida, eu e o Josef comemo-nos como animais, como
lobos, em todas as camas da pousada. Engolimo-nos. Em Dortmund, eu
sonhava com ele. No duche. Em Weimar, comecei a conformar-me. Em Weimar,
tivemos uma cadela, Lassie. O meu marido apareceu com ela pequenina,
quando chegámos. Morreu uma semana antes de partirmos para Reggensburg,
bem-educada. Conformei-me que não voltaria a ver o Josef. Por isso,
nunca quis voltar a Amstetten. O Josef era um segredo para sempre. Havia
momentos em que me parecia que só tinha existido na minha imaginação,
mas isso é algo que me acontece com todo o passado. Há momentos em que
me parece claramente que algum detalhe do passado, a minha mãe, sexo
oral quando namorava com o meu marido, sopa de abóbora, só existiu na
minha imaginação.
Eu não tinha qualquer fotografia do Josef. Mesmo já em Reggensburg,
havia vezes em que me sentava no sofá, de braços cruzados, a esforçar-me
para recordar o seu rosto. Quando não conseguia, ia à cozinha e fazia
panquecas. Era uma espécie de compensação e, ao mesmo tempo, um hábito.
Depois, noutros dias, via-o em tudo. Havia um calor. O rosto dele era
como uma chama. Tentei aprender a bordar. Via o rosto dele nos novelos
de linha, no pano esticado. Foi talvez por isso que, quando apareceu a
imagem dele na televisão, não me admirei logo. Acho que não gerei sequer
um pensamento, não reagi. Analisando, reconheço agora que a ordem dos
meus instintos perante a sua imagem seria não verbalizar. Foi com alguns
segundos de atraso que me apercebi que o Josef, o Josef, o meu Josef,
estava na televisão. Não sei qual foi o meu aspecto. Perdeu-se para
sempre a imagem do meu rosto porque estava sozinha, não estava ao
espelho, estava em brasa, a ouvir. Eu não queria acreditar. Foi em
abril. Quando acordo a meio da noite com pesadelos, acredito por
instantes que posso sentir-me aliviada, que não é real, mas depois,
acordada, o pesadelo é ainda mais intenso porque é real. O Josef punha a
língua toda dentro da minha boca. Abril, abril, quando desliguei a
televisão, cambaleei pela sala. Agarrei-me a móveis para não cair. E
pensei: não. Pensei: não. Até cheguei a sorrir. Não pode ser. Em roupão,
tirei o carro da garagem e fui comprar revistas e jornais. Nenhum tinha
a notícia. Liguei o rádio do carro e não falavam de outra coisa. No dia
seguinte, todos os jornais tinham a notícia.
O Josef tinha mantido a filha presa na cave durante vinte e quatro
anos. Tinha-a violado repetidamente e tinha tido sete filhos com ela, um
dos quais morreu. Na televisão e no rádio, chamavam-lhes filhos-netos. A
filha do Josef e alguns dos seus filhos-netos viviam na cave. Um deles,
uma rapariga com dezanove anos, nunca tinha visto o sol. Eu era
obrigada a ouvir o meu marido comentar esta história e a repetir: em
Amstetten, quem diria em Amstetten, e nós lá, quem diria. E
perguntava-me se eu conhecia aquela rua. Eu respondia. Já me tinha
perdido naquela parte da cidade. Este ano, em abril, choveu muito pouco.
Tenho saudades de quando chovia em abril. Eu fixava a imagem do Josef
na televisão e acreditava que os seus olhos líquidos me viam. Não tinham
envelhecido. Eram os mesmos. Os lábios eram os mesmos. O Josef traiu o
nosso segredo com o seu próprio segredo. Mas, agora, o seu segredo já
não existe, toda a gente o conhece. Agora, só existe o nosso. "
Retirado daqui.
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Na senda daquilo que o Diogo já escreveu sobre o José Luís Peixoto. Explico porquê: hoje, acabei por converter uma alma que, saudavelmente, nunca tinha lido nada do autor, embarcando no que a dissonância que a qualidade existente nas suas obras e o sucesso que têm induz, embora apenas o tenha feito através da mera exposição dos textos do seu blog pessoal, onde partilha o que escreve para os órgãos de comunicação social e, também, publicita uma míriade de eventos de modo a, naturalmente, não perdermos pitada da sua congenialidade. O texto, de título "Traição", que nunca tinha lido, facilitou significativamente o processo. E por que não partilhar um texto de um dos vencedores do prémio José Saramago? Ele escreveu este, até, especialmente para uma revista de São Paulo, numa operação indefectível, permitindo revelar e relevar a capacidade literária lusitana em terras brasileiras.
Salve-se a referência ao Josef Fritzl, "o monstro de Amstetten", para recordarmos a desculpa mais original, por ser a mais desproporcional, para alguma coisa já cometida: "só queria proteger a minha filha das drogas".