terça-feira, 28 de maio de 2013

"clitóris ou caroço?" ou "os érres dão tesão"

"Hoje é dia 21 de outubro de 2008. Estou a beber chá.

O meu marido anda lá fora, no quintal. Na paisagem imóvel da janela, uma brisa ligeira nas folhas mais altas, vejo-o às vezes. Furtivo, o meu marido passa com a pá, ou o ancinho, ou a mangueira, ou a tesoura de podar. Na nossa casa, os catálogos de jardinagem terminam sempre como leitura de casa de banho. O meu marido anda de botas e chapéu. Não há sol, mas aquele é o chapéu da jardinagem. Também as calças dobradas na canela e as botas. Agradeço a Deus pela jardinagem. Obrigado, Senhor, pela jardinagem. O meu marido precisa de distracções. Não lhe chega a televisão, adormece. O meu marido é doente cardíaco. O vidro da janela é grosso e eu ouço mal. Ouço bem um apito fininho, constante, branco, uma linha, ouço mal tudo o resto. O vidro da janela, eu ouço mal, mas sei que o meu marido está a assobiar. As pequenas plantas fazem-no feliz.

Actualmente, o meu clitóris não é mais sensível do que qualquer outra parte do meu corpo. É feito de pele, como os meus ombros, cotovelos, joelhos. Creio que endureceu. Ainda é de tarde, são quase cinco horas, mas já se sente o início da noite. Aqui, nos arredores de Reggensburg, há pássaros que só aparecem a esta hora. Não sei porquê, alguém deve saber. São pássaros pequenos que fazem barulho. No passado, o meu clitóris deu-me grandes alegrias. Marcou o meu epicentro. Sou uma mulher, não deixei de ser uma mulher, mas agora tenho outros interesses. Não sei ainda quais são. Talvez a mágoa. Talvez a mágoa seja agora um dos meus interesses. Presto bastante atenção à mágoa, é certo. Neste verão que terminou, parecia-me que a mágoa tinha um cheiro entre os primeiros instantes de cada dia, uma nesga de luz matinal na janela do quarto. O meu marido na cozinha, acordado há horas, as chávenas a chocarem umas nas outras, e eu a decidir se estava acordada, se era outra manhã, se queria outra manhã, acordar, e a parecer-me que a mágoa tinha um cheiro. O meu marido nunca se apercebeu. O meu marido esqueceu-se de tocar-me há talvez quinze, dezasseis anos, nunca mais se lembrou. Em Fevereiro, faço setenta anos. Esta parte do ano, outubro, ficou sempre ligada na minha cabeça aos outubros de quando era adolescente e ia para a escola. Na minha imagem mental dos meses, agora parece maio. Há cinco meses, em maio, eu ainda estava chocada. Ontem, ao lavar-me, passei a mão pelo clitóris e, instintivamente, admirei-me. Por instantes, pensei que pudesse ser uma verruga, um sinal, um caroço.

 "um caroço deste tamanho"

Os arredores de Reggensburg têm asseio, os muros estão sempre acabados de pintar. Temos vizinhos a boa distância. Gosto do vento, mesmo daquele vento frio a meio do inverno. Reggensburg fica a cerca de 225 quilómetros de Amstetten. Nunca fiz essa viagem, nem para um lado e nem para o outro. Quando saímos de Amstetten, fomos viver para Dortmund, ficámos lá dez anos. Depois, fomos para Weimar, ficámos lá dois anos, até o meu marido se reformar. Podíamos ter procurado casa em qualquer lado. O meu marido insistiu na Baviera porque ficava perto da Áustria, acabamos por concordar com Reggensburg. Quando pede alguma coisa, o meu marido gagueja. Às vezes dizia: Amstetetetetetten. Sozinho, planeava fins-de-semana em Amstetten. Dizia: vivemos cinco dos nossos melhores anos naquela cidade, porque não queres voltar? Eu começava por negar que não quisesse voltar. Depois, inventava desculpas sem tentar sequer fazer sentido. Não sei o que ele pensava de mim. Até podemos ficar no teu hotel, dizia o meu marido, sem saber o que dizia. Literatura. Adorava que o meu marido gostasse de ler. Tenho a certeza de que adoraria os russos: Tolstoi, Dostoievski, Gogol. Ah, Gogol. Quando quis trabalhar, o meu marido conseguiu-me uma posição a gerir uma pousada quase no centro de Amstetten. Após uma semana de serviço, meados de setembro, o Josef possuiu-me na cama dupla do quarto 28.

Sempre usámos este verbo um pouco antigo, talvez um pouco livresco, século XIX. Quando o Josef começava a rosnar, eu dizia-lhe: possui-me, possui-me. Tenho de falar dos seus olhos azuis. Os olhos azuis do Josef brilhavam, seriam suficientes para iluminar uma sala. Não estou a exagerar. Ou talvez só um pouco. Quando o Josef me sorriu, me tratou por menina, quando me apontou o olhar cheio de entoações, desfiz-me invisivelmente. A partir daí, tratou-se de seguir um sentido. Às vezes, quando deixávamos cair a cabeça sobre as almofadas da cama, eu ficava a fazer-lhe festas no pequeno bigode colado aos lábios. Não era ridículo. Eu sorria, enquanto a nossa respiração abrandava ao mesmo tempo. Depois, ele olhava para mim e sorria também. O Josef sabia sorrir. À noite, o meu marido contava-me todos os pormenores da vida dos seus colegas, mas eu não o ouvia. O Josef gostava de sexo de pé. Eu inclinava-me na direcção da janela e ele ficava por trás, apreciava a paisagem. Em certos assuntos, muitos, eu considerava o Josef um poeta. Amstetten era uma cidade sem sobressaltos, as campainhas das bicicletas, as estações do ano nos dias certos. O Josef tinha umas pernas firmes, que eu gostava de apertar no interior das minhas.

Quando estava bom tempo, aos sábados, o meu marido e eu fazíamos piqueniques. O Josef tinha cinquenta e oito anos, mais quatro do que eu, e bastava que me tocasse com um dedo. Se nos cruzávamos na rua, eu tremia. Ninguém podia suspeitar. Ele sorria sem olhar para mim. Uma vez, estava num restaurante, e o meu marido perguntou-me: estás com frio? Era o Josef. Quando ganhei coragem para olhar melhor, não era o Josef, não era sequer parecido, mas tremi, não consegui controlar-me. Quando o Josef punha a cabeça no meio das minhas pernas, eu fazia-lhe festas no cabelo. Havia semanas em que nos víamos duas vezes, três vezes, havia semanas em que não nos víamos. Dependia de muitos factores. Conheci o Josef quando tive aulas de dança, salsa. Estive em três aulas. Depois de conhecê-lo, desisti. Deixei de ter tempo. Precisava de todos os instantes para pensar nele.

O meu marido estava muito triste na noite em que me contou que tínhamos de partir para Dortmund. Eu disse-lhe algumas frases inacabadas, palavras incompletas. O meu marido disse: pois é. O meu marido nasceu na Saxónia, a meia dúzia de quilómetros de Dresden e, no entanto, já tinha adoptado um sotaque austríaco. Artificial, enjoativo, mas sentido. O meu marido é obediente. O Josef tinha verdadeiro sotaque austríaco, claro. Os seus érres davam-me tesão. Durante anos, eu corava só de lembrar-me dos seus érres. Nessa noite, o meu marido tinha a cabeça entre as mãos, a realidade. Eu não podia fazer outra coisa. Desde esse dia, até à partida, eu e o Josef comemo-nos como animais, como lobos, em todas as camas da pousada. Engolimo-nos. Em Dortmund, eu sonhava com ele. No duche. Em Weimar, comecei a conformar-me. Em Weimar, tivemos uma cadela, Lassie. O meu marido apareceu com ela pequenina, quando chegámos. Morreu uma semana antes de partirmos para Reggensburg, bem-educada. Conformei-me que não voltaria a ver o Josef. Por isso, nunca quis voltar a Amstetten. O Josef era um segredo para sempre. Havia momentos em que me parecia que só tinha existido na minha imaginação, mas isso é algo que me acontece com todo o passado. Há momentos em que me parece claramente que algum detalhe do passado, a minha mãe, sexo oral quando namorava com o meu marido, sopa de abóbora, só existiu na minha imaginação.

Eu não tinha qualquer fotografia do Josef. Mesmo já em Reggensburg, havia vezes em que me sentava no sofá, de braços cruzados, a esforçar-me para recordar o seu rosto. Quando não conseguia, ia à cozinha e fazia panquecas. Era uma espécie de compensação e, ao mesmo tempo, um hábito. Depois, noutros dias, via-o em tudo. Havia um calor. O rosto dele era como uma chama. Tentei aprender a bordar. Via o rosto dele nos novelos de linha, no pano esticado. Foi talvez por isso que, quando apareceu a imagem dele na televisão, não me admirei logo. Acho que não gerei sequer um pensamento, não reagi. Analisando, reconheço agora que a ordem dos meus instintos perante a sua imagem seria não verbalizar. Foi com alguns segundos de atraso que me apercebi que o Josef, o Josef, o meu Josef, estava na televisão. Não sei qual foi o meu aspecto. Perdeu-se para sempre a imagem do meu rosto porque estava sozinha, não estava ao espelho, estava em brasa, a ouvir. Eu não queria acreditar. Foi em abril. Quando acordo a meio da noite com pesadelos, acredito por instantes que posso sentir-me aliviada, que não é real, mas depois, acordada, o pesadelo é ainda mais intenso porque é real. O Josef punha a língua toda dentro da minha boca. Abril, abril, quando desliguei a televisão, cambaleei pela sala. Agarrei-me a móveis para não cair. E pensei: não. Pensei: não. Até cheguei a sorrir. Não pode ser. Em roupão, tirei o carro da garagem e fui comprar revistas e jornais. Nenhum tinha a notícia. Liguei o rádio do carro e não falavam de outra coisa. No dia seguinte, todos os jornais tinham a notícia.

O Josef tinha mantido a filha presa na cave durante vinte e quatro anos. Tinha-a violado repetidamente e tinha tido sete filhos com ela, um dos quais morreu. Na televisão e no rádio, chamavam-lhes filhos-netos. A filha do Josef e alguns dos seus filhos-netos viviam na cave. Um deles, uma rapariga com dezanove anos, nunca tinha visto o sol. Eu era obrigada a ouvir o meu marido comentar esta história e a repetir: em Amstetten, quem diria em Amstetten, e nós lá, quem diria. E perguntava-me se eu conhecia aquela rua. Eu respondia. Já me tinha perdido naquela parte da cidade. Este ano, em abril, choveu muito pouco. Tenho saudades de quando chovia em abril. Eu fixava a imagem do Josef na televisão e acreditava que os seus olhos líquidos me viam. Não tinham envelhecido. Eram os mesmos. Os lábios eram os mesmos. O Josef traiu o nosso segredo com o seu próprio segredo. Mas, agora, o seu segredo já não existe, toda a gente o conhece. Agora, só existe o nosso. "

Retirado daqui.
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Na senda daquilo que o Diogo já escreveu sobre o José Luís Peixoto. Explico porquê: hoje, acabei por converter uma alma que, saudavelmente, nunca tinha lido nada do autor, embarcando no que a dissonância que a qualidade existente nas suas obras e o sucesso que têm induz, embora apenas o tenha feito através da mera exposição dos textos do seu blog pessoal, onde partilha o que escreve para os órgãos de comunicação social e, também, publicita uma míriade de eventos de modo a, naturalmente, não perdermos pitada da sua congenialidade. O texto, de título "Traição", que nunca tinha lido, facilitou significativamente o processo. E por que não partilhar um texto de um dos vencedores do prémio José Saramago? Ele escreveu este, até, especialmente para uma revista de São Paulo, numa operação indefectível, permitindo revelar e relevar a capacidade literária lusitana em terras brasileiras.

Salve-se a referência ao Josef Fritzl, "o monstro de Amstetten", para recordarmos a desculpa mais original, por ser a mais desproporcional, para alguma coisa já cometida: "só queria proteger a minha filha das drogas".

domingo, 26 de maio de 2013

A tribo de Naftali



94.
"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção – isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.

Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca este cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.

Altos montes da cidade! Grandes arquitecturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações – sois hoje, sois eu, porque vos vejo, sois o que [serei?] amanhã, e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem."

- O Livro do Desassossego

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Bom Domingo.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Fogo!



Juntem-se à minha volta, caros concidadãos, patrícios e amigos, e formem um círculo: pois eu sou aquele que passou os portões do Inferno e viu, com os seus próprios olhos, o reino do Demo. Eu senti o calor sufocante das labaredas eternas e fiquei cercado pelos lagos de lava. Não se atrevam a desviar o olhar, caros irmãos, e leiam, pois ontem eu estive no Inferno na terra e o seu nome verdadeiro não é Inferno – é Loja do Cidadão.

Esqueçam os contos expelidos pelas bocas desditosas dos charlatães do quotidiano que ousam declarar que os infernos terrenos se encontram nas maiores aglomerações de sofrimento materialista. Na Suazilândia, onde mais de um quinto da população tem SIDA, e uma minoria desgraçada vê-se mesmo obrigada a ingerir fezes, de forma a cumprir a obrigatoriedade de revestir o estômago antes de tomar a medicação da síndrome cruel. Na Somália, onde o governo não controla o país, que é assolado diariamente por milícias islamitas que impõe com mão férrea a lei de sharia. Na Síria, onde guerra civil é violenta e o fim não existe. Ou aqui mesmo, em Portugal, onde a maioria da população vê-se obrigada a observar impávida enquanto um clube regional, representando uma tribo selvagem e bárbara do Norte, rouba descaradamente o título de campeão nacional de futebol.

Enfim, esqueçam estas tragédias. Cesse o chorar dos violinos e o tilintar dos pianos. O Inferno na Terra é a Loja do Cidadão, nas suas diversas filiais, todas igualmente mefistofélicas, todas capazes de corromper ou mesmo de roubar aquilo que o Homem tem de mais precioso – a sua alma – bela, virginal e cristalina. Este é um lugar que combina, com um requinte luciférico, a tortura da existência burocrática do escritório português com o sofrimento sem fim da sala de espera de um hospital. Aqui é o lugar onde o tempo não passa.

As televisões mudas sintonizadas na TVI e os monitores que indicam os números das senhas da fila dividem as atenções dos presentes. O horror espelhado nas suas faces inertes é a representação viva de um grito munchiano. As pessoas esperam e olham. Procuram padrões nas paredes. Os funcionários informam e explicam. Carimbam guias e assinam documentos. Os telefones tocam e as gavetas abrem. Algumas pessoas dormem. Outras parecem não saber onde estão. Roga-se pelo acender de luzes e pelo correr das águas canalizadas. Fazem-se contas das pensões e pagam-se multas. Adolescentes hesitantes pedem o registo criminal vigiados pelo olhar destemido de mães desapontadas. Nada causa tanta submissão como o amor maternal enraivecido.

Isto é o que se vê todos os dias nestas casas assombradas. No entanto, ainda piora. Dentro do inferno burocrático existe um compartimento especial, onde as chamas são mais altas e mais fortes e as almas, que antes queimavam lentamente, agora são sublimadas. As filas são enormes e começam antes do sol levantar. Estes são os desgraçados, os corajosos, os loucos.

Estes são aqueles que se encontram na porta da Segurança Social. Casais jovens que carregam bebés irritantes. Homens de meia-idade com pastas de documentos que parecem ter a rigidez de tijolos vermelhos. Ao contrário dos condenados das outras partes do Inferno, estes parecem ter outra expressão na cara. Não é horror, indiferença ou resignação. Não é melancolia. É um aviso para os transeuntes de que alguma coisa, algures, correu muito mal. Eu vejo isso num sorriso perverso no canto da boca que todos eles parecem mostrar, como se estar preso no vórtice das boas intenções estatais fosse a coisa mais engraçada do mundo. No final da tarde, eu saio do trabalho e vejo que o edifício já está vazio. O Sol desce e as filas já se dissiparam. Por momentos, eu não sei o que é pior. Entrar e beneficiar de ajuda ou ficar cá fora e ter que fazer de tudo para não precisar dela.

domingo, 19 de maio de 2013

Expurgações de um benfiquista



Agradeço o intento prestado pelo cansaço acumulado da queima, que somente após a fatídica final europeia consegui saciar, mas revelou-se insuficiente. Entretanto ocupei-me a distrair-me com a beleza intemporal de Audrey Hepburn em "Roman Holiday", filme que lhe valeu o primeiro dos seus três Óscares, com a loucura de Tony Montana, mediada entre problemas no processo de raiva e os efeitos histriónicos do consumo excessivo de cocaína, com dois dos melhores álbuns de Elton John (“Madman Across the Water” e “Capitan Fantastic and The Brown Dirt Cowboy”), que como nem toda a gente sabe se encontram no início da sua carreira, recorri à inestimável companhia de Dostoiévski e Umberto Eco, comecei a ver “Arrested Development”, vi novelas, vi documentários no Odisseia sobre a crescente raridade do panda vermelho, que actualmente só com muita dificuldade se consegue encontrar no seu habitat natural, a complicada subsistência do urso polar, no Verão do Ártico, quando o gelo derrete, a ímpar essência do tamboril, o peixe pedestre, e a fascinante história da Titanoboa, uma espécie de cobra extinta há já 60 milhões de anos, cuja existência se conhece pela comparação das suas vértebras fossilizadas com as das cobras actuais, permitindo seguramente inferir que tivesse cerca de 13 metros de comprimento, 1,1 metros de diâmetro e pesasse mais de uma tonelada, tentei autohipnotizar-me com cartazes do “Spring Breakers”, bem como estive com amigos, bebi, fumei os necessários cigarros e bebi e fumei, mas pura e simplesmente não dá. A normalidade não é um bom lar para a desolação, sendo o seu único.

Acho difícil acreditar nas Moiras, as três irmãs que conjuntamente teciam o destino de homens e deuses. Também me mostro algo relutante quanto a ser Deus a escrever todos os pergaminhos da nossa existência. Pelo que ficarei valentemente chateado caso chegue ao céu e a santíssima entidade efectivamente exista. Significaria que o xoninhas teria ficado este tempo todo na cobardia de não comprovar a sua existência, após ter enrabado, e sem vaselina, espiritualmente a nação benfiquista. Apesar de a situação não ser do pior que o Senhor do Universo alegadamente consegue [ver a Bíblia], é o suficiente para ter a obrigação de prestar contas. Peço-lhe encarecidamente que vá contemplar criações suas, nomeadamente a Scarlett Johansson, a Olga Kurylenko e a Allison Brie e deixe o Benfica arredado do seu experimentalismo trágico-dramático.

Acredito na concepção abstracta de fado português quando é compreendido como a constatação de um elemento fatalista numa história já passada. É dessa sina malfadada que o primado de Jesus se caracteriza, com o capítulo apoteótico a dar-se nesta época. A genuflexão (nunca pensei conseguir arranjar contexto para utilizar esta palavra sem ser em argumentos porno) de Jesus no Dragão, prostrado e incrédulo, foi a sua representação perfeita. Recordemos o que aconteceu na totalidade do assombrado reinado jesuíta: Benfica campeão nacional na primeira época; na segunda, o Benfica perde 5-0 no Dragão e é eliminado nas meias-finais da Liga Europa com o Braga; na terceira, o Benfica infantilmente concedeu na segunda metade da época uma vantagem de oito pontos, cinco deles em jornadas consecutivas contra Vitória e Académica, e o Porto termina por festejar na Luz; nem sequer preciso de me dar ao trabalho de descrever a actual. Reparar, unicamente, que se encontra incompetência relativamente ao campeonato, o empate caseiro com o Estoril simplesmente não poderia ter acontecido, e ausência de fortuna relativamente à Liga Europa, pontificada pelos contornos da derrota, por si só já dolorosos, mas ampliados ainda pela similitude com o que tinha sucedido no Dragão.

O legado de Jesus vive desta ambivalência: devolveu o Benfica à disputa, mas não a consegue ganhar. Voltámos a ombrear verdadeiramente com o Porto em domínio nacional, mas perdemos sempre no ombro-a-ombro. Nas alturas de fogo, quando a vitória tem de acontecer, o Benfica claudica invariavelmente. O Benfica de Jesus tem o mérito de finalmente parecer à altura dos desígnios de um clube com a sua dimensão e o demérito de não os conseguir alcançar. Tendo a próxima época como inflexível limite, sou ainda assim favorável à continuidade do técnico da Amadora.

É inevitável os portistas da minha geração lerem este texto através de uma confortável superioridade. E é legítima, é alardeada pela sobranceria da glória. Mas também eles sabem da felicidade da sua condição, e que a posição hegemónica da última década, sensivelmente, poderá ser agora ramagem caduca. Pretendi isolar especialmente a parte atinente ao período de Jesus enquanto treinador do Benfica, mas é até simples recordar outros períodos da história recente do clube que podem ser adicionados à sina que me despendi a retratar. Ainda assim, benfiquistas, nada temeis. Leiam Shakespeare, “Péricles”, onde o dramaturgo se compadece a demonstrar que até o mais dramático dos cenários pode conhecer um final feliz. Temo-lo do nosso lado para a próxima época, em que é absolutamente inaceitável a possibilidade de não ganhar novamente o campeonato. E fazê-lo não é, diga-se, mais do que a nossa obrigação.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Insónia, Televendas e Telejornal (eu não consegui pensar num título)


São dez horas da noite. Um homem enfia-se na cama. Está orgulhoso. Sente-se triunfante. Conseguiu resistir aos encantos sedutores e malignos do entretenimento cibernético. Em outras noites, falhava. Sentia-se como um fracassado. Um desperdício de moléculas. Uma vergonha para a família. Uma desgraça para a nação. Uma ovelha negra incapaz de adormecer a horas decentes. Nessas noites, olhava para o relógio e era meia-noite, mas pouco depois eram três da manhã. E este vagabundo tinha que acordar às seis. E acordava, meio morto, meio vivo, dominado pelo ímpeto dos impulsos suicidas matinais que infestam a população preguiçosa.

Mas nesta noite, o caso era diferente. Conseguiu resistir. No meio deste vinte e cinco de Abril individual conseguiu derrubar o regime ditatorial da escassez de sono. Acordará feliz (quase) e cheio de energia. Se tudo correr bem, dormirá as abençoadas e recomendadas oito horas de sono. Poderá ser um membro produtivo da classe trabalhadora e contribuir para o produto interno bruto. A criatura lê um livro. Ajuda a adormecer. Meia hora bastará, pensa ele. O tempo passa e ele continua sem sono. Lê mais. São onze horas. Lê mais um pouco. É meia-noite. Continua sem sono. Decide tentar dormir mesmo assim.

Vira-se para o lado esquerdo. Pondera a natureza imutável do teto. Vira-se para o lado direito. Pensa na vida. Pensa nela. Pensa no arqui-inimigo quotidiano que todos temos. Passa mais uma hora. Vira-se de barriga para baixo, com a cara enfiada na almofada. Pondera novamente o teto. Percebe que fracassou. Percebe que está cheio de fome. Como as horas são impróprias e a necessidade fala mais alto, qualquer coisa serve. Azeitonas, sardinhas enlatadas, bolachas, batatas fritas e chocolate. Não consegue comer mais. Não quer ler. Ele decide ligar a televisão.

São duas horas da manhã. A única coisa que passa é o programa de televendas. Primeiro estranha. Mostra desprezo. Sente a superioridade que advém de ser uma pessoa que abomina este exercício de marketing. Depois apaixona-se pelo festival de horror do empreendedorismo americano. Não percebe como aquele programa consegue cativá-lo daquela forma.

Oh, sim, pensa ele, canta para mim, ó musa, e diz-me quais são as coisas que eu preciso de comprar urgentemente. Num mundo de escolhas infinitas, é relaxante observar alguém tentar convencer-te, com um entusiasmo desconcertante, que aquilo é exactamente o que falta na tua vida. Tu não precisas de pagar a renda. O preço da gasolina é irrelevante. Aquilo de que tu precisas é de um cortador de pêlos do nariz. Tu precisas de uma caneta mágica que remove os riscos do teu carro. Tu precisas da lâmina que te permite cortar os vegetais da forma mais prática e interessante. Tu precisas de exercitar os teus abdominais se mexeres um único músculo. Tu precisas da máquina igual à Bimby mas que não se chama Bimby.

Esquece o teu trabalho. São três da manhã, mas só se vive uma vez. Agarra naquela garrafa de vinho que não acabaste. Bebe o resto. Não te preocupes com copos. Bebe da garrafa. Não preocupes quando entornares vinho tinto no colchão. Alguém deve vender alguma coisa que resolve isso facilmente. Quando estiveres bêbado e forem quatro da manhã, vai à casa de banho e faz caretas no espelho. Vê como já tens aquilo que se parece com o início de rugas. Ri-te sozinho. Não te preocupes. No televendas estão a anunciar que o creme de baba de caracol consegue amaciar as deformações cutâneas mais profundas.

Às cinco da manhã, adormeces. Aliás, desmaias. Às seis, o despertador toca e tu, resignado, acordas. Ainda estás um pouco bêbado. Aceitas que aquilo não é um sonho e aceitas que és um adulto e aceitas que tens mesmo que trabalhar, e que, afinal de contas, já te sentiste pior. A televisão ainda está ligada. O noticiário substitui as televendas. Oh não, pensas tu, o desfile de malucos a tentarem vender o impossível acabou de começar.