sábado, 29 de junho de 2013

Desonra e Infâmia

Há uns dias, ao fazer a ronda semanal pelas crónicas da Visão, cruzei-me com um texto de José Luís Peixoto. Por muito grosseira que considere a sua escrita, é uma actividade prazerosa deleitar-me com as suas iluminadas palavras - de quando em vez, para não enjoar. Na última que li, José Luís Peixoto fazia uma ode a' Os Maias, um livro que, nas suas palavras, mudou a sua vida para sempre.
Leio há pouco, com horror, que José Luís Peixoto é apenas um dos escritores que darão continuidade a'Os Maias, numa iniciativa do Expresso.
A ideia não é original; recordo-me de ter de fazer o mesmo exercício, relativamente ao livro Se perguntarem por mim, digam que voei, da Alice Vieira, num concurso literário em que participei no 7º ano. Esse livro, tal como Os Maias, tem um final aberto o suficiente para essa ideia ocorrer quase instintivamente ao leitor. Receio, porém, o alastramento desta adulteração de obras intocáveis. Há uns tempos, também pela mão de JLP, os Lusíadas foram reescritos. Sim: José Luís Peixoto pegou numa das maiores obras líricas da humanidade, e reescreveu-a.
Entendo que a ideia de pegar nos Magnum Opus dos dois maiores artistas da palavra em língua portuguesa e vê-los reescritos pelo pior é ludicamente muito interessante. Pelo humor, pelo entretenimento, pela jocosidade, é uma boa experiência. Mas se é para se levar a sério, é um sacrilégio de proporções bíblicas. E José Luís Peixoto, mesmo considerando ele a sua escrita, por certo, de qualidade inabalável, deveria reconhecer que prosseguir um livro terminado há mais de um século por um colega escritor que pretendia que este terminasse daquela forma para a eternidade é profanação de herança artística. O mesmo se aplica, naturalmente, aos restantes redactores dos próximos capítulos d'Os Maias.
Nem é caso para dizer que Eça rebola no seu túmulo ao saber desta notícia. O mais provável é que este se levante e venha resolver o assunto pelas próprias mãos. Se a indignação que sinto me levantaria a mim do mundo dos mortos, nem quero imaginar o que pode fazer ao cadáver putrificado de Eça. Por via das dúvidas, dormirei de porta trancada, para que o seu regresso por vingança não passe por minha casa, onde Os Maias permanecerão inalterados.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Movimento de Revolução Manca


Confesso um guilty pleasure ao acompanhar a situação da legalidade dos candidatos dinossáuricos às autárquicas. O caso está revestido de uma incompetência e bizarrice tal que, depois de curada a incredulidade, consigo daí retirar um prazer sado-masoquista. Ainda mais retiro, naturalmente, quando verifico que, apesar de tudo, o candidato que passou uma década a gastar o dinheiro dos contribuintes a deixar obra na minha cidade de Vila Nova de Gaia, deixando-a a segunda mais endividada do país, não deverá poder repetir o furacão despesista (ou "investidor pró-progresso", como ele se auto-intitula, apesar da óbvia cacofonia) na cidade onde passo o meu dia. Se não for a democracia a parar este megalómano alucinado, que seja um dúbio acórdão; utilitarista que sou, penso que sairemos todos beneficiados desta salgalhada constitucional.
Assumo, no entanto, alguma esperança que Seara, na capital, ainda tenha hipóteses de se candidatar. Considerando a dualidade que tem caracterizado esta novela, as hipóteses são dificeis de medir, mas existentes. A minha simpatia com Seara é tudo menos política; porém, uma personagem tão complexa, uma personalidade que está tão em cima do limbo entre a genialidade e a imbecilidade, merece que se abra mais espaço mediático para este poder explorar. Já seria um progresso se a comédia que é neste momento judicial passasse a ser meramente política. Porque chamo comédia ao espaço mediático ocupado por esta lenda de Sintra? Não há recursos semânticos num dicionário suficientes para conseguir explicar, caro leitor. Recomendo assim que tire as suas conclusões, através desta amostra que, de tão pequena, me envergonho de partilhar.







quarta-feira, 26 de junho de 2013

Moreirices

Aquando da sua recente filiação oficial ao Partido Socialista, Isabel Moreira classificou a derrota do seu novo clube nas legislativas de 2011 como "injusta". Terei de voltar a conferir as estatísticas, mas se a memória não me falha, o PS teve mais posse de bola, mais oportunidades (lembro-me de um remate do Teixeira dos Santos à barra depois de um passe de morte do Amado), mas o contra-ataque do PSD foi letal, beneficiando até de um golo num fora de jogo milimétrico.
Não entendo como o resultado de um sufrágio universal numa democracia pode ser injusto, quando esta foi precisamente a fórmula mais justa que a humanidade conseguiu conceber para legitimar governantes. Entendo que Isabel Moreira queira com esta afirmação condenar o governo que se seguiu à eleição; ignora, no entanto, que as eleições são a melhor forma que os cidadãos têm de sancionar ou premiar o trabalho de um governo. Há dois anos, castigaram Sócrates nas urnas, e viram em Passos Coelho a alternativa mais credível. Uma expectativa que saiu gorada, não pela agenda ideológica que apregoa a oposição, mas por uma enxurrada de erros crassos, mais até do foro político que económico. E serão castigados nas próximas legislativas. Como é justo.
Isabel Moreira, numa tentativa inevitável de ataque ao governo aquando da sua adesão ao principal partido da oposição, conseguiu, isso sim, atacar o sistema eleitoral e, mais além, a democracia. O seu pai deve estar orgulhoso.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Série “A Esquerda Portuguesa” - Introdução – A Insustentável Facilidade em Ser de Esquerda


“As pessoas não são um número, são cada uma delas uma história pessoal. Não são apenas uma percentagem para multiplicar, dividir, somar ou subtrair, mas homens e mulheres com as suas ambições, os seus desejos, a sua vontade de viver.” – José Luís Peixoto

As pessoas não são números, diz-nos, sagazmente, a Esquerda (neste caso através do Espírito Santo Revolucionário, Porta-Voz Supremo, Mestre Superior da Palavra e Prémio José Saramago 2001 - José Luís Peixoto). Eu não quero discordar desta afirmação. O peso da boca de quem profere estas palavras é demasiado. Seria o maior vitupério cultural alguma vez cometido por um homem designado como português. Discordar frontalmente de uma afirmação proferida pelo Vulto das Letras é o equivalente a tentar parar um carro com a mera intersecção de um corpo humano. O resultado não será a paragem do veículo. O resultado será a projecção violenta do corpo, vulgo atropelamento.

Portanto, vamos para uma realidade alternativa onde as Leis da Física Literária não se aplicam. Um lugar onde a única coisa que José Luís Peixoto tem em comum com José Saramago é o primeiro nome. Um lugar onde Zezinho Luisinho Peixoto não aprendeu a ler, nem a escrever, e ficou condenado a passar o resto da sua existência analfabeta nos latifúndios intermináveis do sertão alentejano a plantar batatas numa terra demasiado seca para a agricultura. Um destino trágico, certamente, mas com um esforço hercúleo de contenção lacrimosa, deixemo-nos levar por este Novo Mundo e vamos, então, finalmente, por mares nunca dantes navegados, discordar do Senhor Escriba Real, José Luís Peixoto.

Essa afirmação, proferida diversas vezes, sob diversas formulações, por diversas personalidades da Esquerda, é fundamentalmente incorrecta. As pessoas são números. As pessoas são o número um, no caso de considerarmos que a forma humana constitui um indivíduo, e que esse indivíduo é um único elemento, indissociável e indivisível. Esta é uma afirmação irrefutável, pelo menos para pessoas que não se encontram sob o efeito de ácido lisérgico ou cogumelos psicadélicos e, dessa forma, não aceitam a divergência entre o homem e a matéria. As pessoas também podem ser outros números. As pessoas podem ser duas pernas ou cinco dedos. As pessoas podem ser 4415 euros, que é o encargo médio do Estado por cada aluno até ao ensino secundário. As pessoas também podem ser 72, que é a idade que as crianças portuguesas nascidas em 2011 terão quando acabarem de pagar a sua parte da factura das Parcerias Público-Privadas. Na maior parte dos casos as pessoas são também mais de oitenta mil milhões de neurónios. Uma das várias excepções é precisamente os membros da tribo que ignora todos estes números e cuja designação está indicada no título da introdução deste pequeno e humilde tratado amador especulativo: A Esquerda Portuguesa.

Ingénuo não é a palavra adequada para descrever esta categoria geográfica política. Neville Chamberlain foi ingénuo quando pensou que Hitler iria parar na Checoslováquia. Adolf Hitler foi ingénuo quando pensou que era mais inteligente que Napoleão. Estupidez também não é a palavra adequada. Pôncio Pilatos foi estúpido quando cedeu aos judeus e decidiu condenar Jesus à morte. Jorge Jesus foi estúpido quando insistiu em colocar Emerson na lateral-esquerda do Benfica. Perdoem-me, mas não quero ser incongruente. Esta esquerda é ingénua, sim, e também é estúpida, mas estes são apenas dois dos atributos presentes no rol de adjectivos necessários para qualificar esta aberração sociológica. Chamemos-lhes então de ingénuos-estúpidos-ignorantes-loucos-pretensiosos-hipócritas-arrogantes-insípidos-amnésicos-megalómanos-picuinhas-enjoados-incompetentes-fariseus-paranóicos e no caso do Mário Soares e do Jerónimo de Sousa, senis. Acho que chega. Eu sei que muitas das coisas que eu aqui afirmo são excessivas. Eu sei o quão ridículo tudo isto pode parecer. Mas este exagero surge da necessidade de lutar fogo com fogo. Esta caracterização pode parecer um exagero sectarista ou uma hipérbole imperdoável onde se sacrifica alguma factualidade pelo poder lúdico destas ferramentas estilísticas. Quem se considera de esquerda olhará para esta lista de quinze pecados e verá apenas a enumeração extremista de um neoliberal. Mas o que me faz expressar tamanha cólera pela esquerda política é que toda a sua argumentação está assente na premissa de que eles possuem o monopólio da solidariedade autêntica e que as intenções da direita não passam de uma misericórdia mal-amanhada que o gigante Golias mostra ao diminuto David.

Essa premissa arrogante alarga-se e infecta todo o modo de funcionamento das instituições político-sociais que funcionam debaixo da autoproclamada alçada da Esquerda. Eles protegem os pobres como se a sua privação material desse-lhes, por si só, razão. A escassez material dá origem a uma altivez moral semiautomática, como se a fraqueza ou a insuficiência fizesse com que eles estivessem indubitavelmente certos e fossem os inquestionáveis possuidores da verdade. A abundância material, por sua vez, é um sinal de uma perversidade digna da condenação mais veemente, tornando certa, moral e boa, a subsequente expropriação da riqueza em nome da protecção dos pobres inofensivos. Para eles o mundo é simples. A crise tem um culpado: o capitalismo. O conflito israelo-árabe tem um culpado: os israelitas. A greve tem um culpado: o governo. A lógica desta dinâmica é a de uma injustiça gritante contínua, cujo papel é a catalisação da revolta premente, que é o sangue que corre nas veias mefíticas dos pseudo-revolucionários urbanos. Para eles a política é uma luta, o poder é a revolta e a reivindicação é um prazer. A arte do exercer a autoridade é uma exaltação colectiva puxada pela adrenalina pulsante da busca eterna pela novidade. A perspectiva de mudança funciona como uma droga, cuja capacidade de entorpecimento exige sempre uma dose cada vez maior. A política de esquerda vive no domínio imediato das sensações, da necessidade de gritar pelo oásis imaginário na linha do horizonte do deserto. A Esquerda não é um debate sério das ideias ou uma ponderação balanceada de soluções, mas sim um desporto radical teórico com uma capacidade estonteante de atrair um número enorme de revolucionários de sofá com desequilíbrios hormonais, que falha redondamente em ajudar a Humanidade e cujas ideias são responsáveis pelas maiores calamidades do mundo moderno.

O que geralmente não entra na perspectiva da Esquerda Portuguesa é que é a coisa mais fácil do mundo afirmar que queremos o bem para as pessoas. Todos queremos o melhor para as pessoas. O pior é quando se dá um passo em frente e afirmamos que sabemos fazê-lo, e que é simples e que temos um conjunto de soluções concretas para tal, não porque acreditamos verdadeiramente nestas soluções, mas porque procuramos agradar as multidões com uma injecção súbita de alívio do facilitismo. Como distribuir centenas de milhares de computadores a crianças em idade escolar com a certeza inabalável de que isso é melhor alocação de recursos possível para melhorar o sistema educativo. É fácil dizer que temos uma “receita”, um “plano”, uma “estratégia” e uma “aposta” cheia de acções positivas. É fácil dizer que precisamos de crescimento económico. Todos estamos de acordo com ideia de crescimento económico. Todos concordamos que o objectivo é melhorar a qualidade de vida das pessoas, preservando primeiro a liberdade e tentando criar, de forma sustentável, crescimento económico. O difícil é dizer que não sabemos o que é melhor para toda gente, que não temos nenhuma solução mágica para criar a curto prazo um número absurdo de relações comerciais que melhorem simultaneamente a vida de dez milhões de pessoas e que, provavelmente, a melhor coisa a fazer, a melhor política, digamos, é, simplesmente, não atrapalhar. O difícil é ter a humildade de assumir que a melhor acção de Estado é a inacção, e que as coisas não são fáceis, nem rápidas, mas que com o engenho humano e liberdade divina, um bocado de paciência e perseverança, (quase) tudo é possível.

Vamos, agora, aceitar a premissa da esquerda e afirmar que as pessoas não são números. Partindo deste princípio, números não são uma forma válida de representação da realidade e não constituem um método útil para o processamento de informação. Aquilo que a Esquerda nos parece querer dizer é que, de uma forma muito simples, a Matemática é uma ciência falsa, afastada da realidade, portanto podendo ser justamente comparada com Astrologia ou Cristaloterapia. Obviamente, não é isto que a Esquerda sugere, mas este tipo de raciocínio é o destino do caminho pavimentado pela afirmação “as pessoas não são números”. Nesse mesmo mundo, existem unicórnios e baús de ouro no final de cada arco-íris. Nesse universo, Vítor Gaspar não passa de um contabilista diabólico, um psicopata vazio, desprovido de emoções, um técnico com a eficiência da máquina genocida Nazi, um homem capaz de destruir milhões de vidas enquanto está sentado na sua sala a editar uma folha de Excel. E Passos Coelho é, claro, a reincarnação de Salazar, o monstro incompetente, cego ao sofrimento do povo, surdo às alternativas da Esquerda e mudo perante o poder dos mercados merkelianos. Ao assumirmos que as pessoas não são números, a negação aritmética permite-nos afirmar todo o tipo de alarvidades sobre os nossos opositores e permite-nos reclamar de tudo. Permite-nos gritar pela injustiça que são os cortes da despesa e pela injustiça que são os aumentos de impostos. O desfasamento entre a esquerda e a realidade reside na sua necessidade permanente de estar em oposição, mesmo quando está no poder. A Esquerda necessita de inimigos. Eles necessitam de demónios eternos, de fantasmas e de paranóia, pois a sua casa é assombrada e a sua nação é a penumbra.

Para acabar, esqueçamos Gaspar e voltemos a Jesus. Não o Messias, Rei dos Judeus, mas o mascador descortês de pastilhas elásticas da Amadora. Como afirmei, foi estúpido ao insistir em colocar Émerson na lateral-esquerda do Benfica. Qualquer pessoa com um mínimo de razoabilidade na sua caldeirada de personalidade sabia que aquilo não era material para jogador de futebol, mas sim para roupeiro. O problema foi que depois de passar uma época inteira a sublinhar a qualidade do jogador, na época seguinte dispensou-o pela calada, e substituiu-o por Melgarejo. O jovem paraguaio era extremo-esquerdo, mas Jesus garantia que transformá-lo-ia num grande defesa. Como qualquer pessoa possuidora da plenitude das suas capacidades psíquicas conseguiria ver, Melgarejo não era bom o suficiente para jogar na lateral do Trofense. Mas então Jesus foi ainda mais audaz. Depois de ter substituído um jogador horrível por um jogador adaptado, decidiu continuar esta sequência de decisões com mais uma solução miraculosa: um jogado horrível e adaptado, chamado André Almeida. O resultado está à vista. Jorge Jesus pode ser o treinador do Benfica, mas bem que poderia ser o Secretário-Geral do futuro Partido Bloquista do Socialismo Comunista de Esquerda. Aqui está, demonstrado de forma análoga, os tiques magníficos da Esquerda Portuguesa. Depois da primeira solução mágica ter corrido mal, decidiram criar uma outra solução igualmente mágica, seguido de mais uma solução mágica, presos no túnel eterno de esfaqueamentos num cadáver, com a convicção de que um desses golpes acabará por, inevitavelmente, trazê-lo de volta à vida.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Ofélia

O amor da minha vida trabalha no consultório do meu dentista. É sua recepcionista e auxiliar. Vou lá há já vinte anos, sendo portanto o único dentista que frequentei, e ela não envelheceu nada durante todo o espaço temporal que representa a minha vida com preocupações dentárias. Exagero: desapareceu alguma da vitalidade dérmica da juventude. Mas as rugas são escassas e, de alguma forma, até lisonjeiras. Tem uns olhos azuis pequenos como safiras, tez branca como uma boneca de porcelana, um nariz impertinentemente arrebitado, e um sorriso imaculado.
Lá estava ela, ao balcão, a receber a minha chegada com a sua imortal beleza. Estava, no entanto, ocupada. Uma senhora de idade, de braço dado com uma mais nova, disparava incessantemente pequenos pedaços da história da sua vida.
- Ele até me disse para comer sopa, não gosto muito, mas já não sou nova, e eu sei que sopa me faz bem, até por causa do dente, já mo dizia a minha mãe...
Sentei-me no sofá de cabedal e verifiquei que literatura havia disponível para entreter a minha impaciência. As opções eram escassas e de questionável qualidade: uma TV+, uma TVGuia e uma TV qualquer-coisa. Peguei na primeira, porque a capa prometia que, se eu a lesse, ia conhecer as confissões sexuais dos concorrentes da Casa dos Segredos, e pareceu-me uma oportunidade a não perder.
- ...que faleceu com sessenta e seis anos, muito nova, eu já fiz setenta e três em Fevereiro...
A minha musa acenava continuamente, mais para mostrar que ainda estava viva do que eu jeito de aquiescência, e conservava um sorriso forçado ligeiramente caído para a direita. Trazia, como sempre, o cabelo amarrado num rabo de cavalo. Ocorreu-me que nunca a vi de cabelo solto; esta imagem mental, com muito vento à mistura, ocupou-me durante os dois minutos seguintes.
- ...o meu marido é mais velho, mas esse já não se importa com os dentes, já não tem muitos, mas tem muita saúde para a idade...
O discurso tinha como pano de fundo o agoniante ruído da broca que, na sala ao lado, torturava o pobre paciente que me antecedia. A saturação começava a apoderar-se do meu amor. Nunca soube o nome dela; agora era muito tarde para perguntar, seria um acto mais insolente que corajoso, e estranho para ambos. Ela conhece-me desde que me cresceu o primeiro dente, e eu não soube aproveitar a minha já ida aura infantil para me aproximar dela, e a inocência para lhe questionar a graça. Agora, a não ser que o seu nome surja nalgum vocativo alheio, o meu amor permanecerá anónimo.
- ... ainda no outro dia foi ao cardiologista e está de ferro, ao contrário de mim, que às vezes tenho uns apertos que não me deixam dormir de noite...
Vamos fugir, meu amor. Vamos deixar a velha tagarela para trás, a broca para trás, a vida para trás, e fujamos juntos. Minha Ofélia, minha Ana Plácido, minha Beatriz, minha Julieta.
- ...às vezes até durmo no sofá, para não acordar o meu marido quando me levanto, mas isso faz-me ficar com dores nas costas...
A senhora mais nova, presumivelmente filha, que segurava a velha linguareira pelo braço começava agora a puxá-la, com a consciência óbvia da inconveniência do monólogo da mãe, que só esta parecia não detectar. Após algumas tentativas frustradas de retomar a conversa, pediu à mais nova que lhe segurasse na carteira e no casaco, que ainda tinha de ir ao quarto-de-banho. Foi a minha aberta; o meu amor sorriu para mim e cumprimentou-me pelo nome. Não me posso dar ao mesmo luxo: limitei-me a um envergonhado e formal “boa tarde”.
- Podes esperar mais cinco minutos, que o Dr. Pedro deve estar quase despachado.
A sua voz é uma exótica mistura de doçura e rouquidão. A agoniante dor do siso que me levou àquele consultório adormeceu por momentos. Estou em crer que é a sua voz a receber-me, mais do que a anestesia, que me retira a sensibilidade.
Reparei que havia o Correio da Manhã em cima do balcão. Perguntei se poderia levar. Ela condescendeu, com uma pequena risada.
- Claro, já fiz as palavras cruzadas.
“Merda”, pensei. Era exactamente isso que eu ia fazer. Mas não quis rejeitar esta oferenda do meu amor e entretive-me a pôr-me ao corrente dos pequenos casos de criminalidade que proliferam pelo país.
- Diogo, podes vir.
Não era a voz do meu amor. Na porta, surgiu a outra auxiliar do dentista, esta gorda e com um penteado menos ortodoxo, e que faz pausas constantes para ir à varanda fumar. Também trabalha lá desde que me lembro, e também ela envelheceu pouco, mas é consabida a capacidade da pele das gordas resistir à secura das células.
Despedi-me do meu amor com o olhar, que não mo retribuiu, ocupada que estava a escrever qualquer coisa numa agenda.
Cumprimentei o meu dentista. É um médico competente, homem de estatura baixa e espírito bonacheirão. Mandou-me sentar, deu-me cuidadosamente a anestesia e, depois da gorda me colocar o tubo sugador de saliva debaixo da minha já adormecida língua, começou o tratamento. Creio que me portei bem. Caso o meu amor entrasse na sala, já não se ia deparar com a jovem criança que chorava copiosamente ao som da broca; ia deparar-se com uma velha criança que consegue com questionável sucesso conter uma magnânima vontade de chorar copiosamente. Nada atrai mais uma linda quarentona que um jovem magro, com um tubo na boca, de punho cerrado e a dar pontapés no ar para controlar a dor provocada por um dente que não soube lavar decentemente.
Despachado, preparei-me para a despedida. Dirigi-me ao balcão, onde ela parecia aguardar-me pacientemente. Desapareceu durante um minuto no consultório, e voltou com uma folha na mão direita. A bata médica não lhe faz justiça, certamente, mas nunca a vi com outra indumentária.
- O Doutor disse para marcar para daqui a quinze dias para continuar o tratamento. Quer à mesma hora?
- Sim. À mesma hora.
- São dez euros e setenta e oito.
Tudo o que quiseres, meu raio de sol.
- Tens aqui o recibo. Assina aqui.
Ao passar-me a caneta para mão, toquei-lhe de forma muito ligeira no dedo indicador com o meu anelar. Devido a este suave mais intenso contacto, foi a tremer que rabisquei qualquer coisa na linha de assinatura.
- Vemo-nos daqui a quinze dias, então.
Mal posso esperar, meu amor.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Um pequeno resumo das coisas que aprendi no mundo empresarial português

Ao longo do meu percurso profissional, várias figuras de proa da indústria portuguesa deram-me vários conselhos importantes, muitos dos quais fiz questão de anotar. Aqui fica um breve resumo desses ensinamentos que, curiosamente, incluem bastantes referências a animais.

Em primeiro lugar, cada caso é um caso. Temos de pôr os pontos nos ii e os traços nos tês. Não pode ser oito nem oitenta, pois a pressa é inimiga da perfeição, mas temos sempre que ter em conta que quem não arrisca não petisca. O importante é agarrar o boi pelos cornos, ter a coragem de chamar o boi pelo nome e nunca, sob nenhuma circunstância, pôr a carroça à frente dos bois. Devemos sempre ter calma e tranquilidade, mas parar é morrer. A gente vai andando e devagar se vai longe. Lembrem-se sempre: quem corre por gosto não cansa, mas quanto mais depressa, mais devagar.

Temos é que estar atentos: gaivotas em terra, temporal no mar. Aliás, há mar e mar, há ir e voltar. E por falar em água, quem anda à chuva, molha-se, e existe gente por aí que estava mesmo a pedi-las. Especialmente em Abril, onde as águas são mil. Para quem não gostar de mar, sempre existe a montanha, e se por acaso Maomé não for à montanha, não se preocupem, a montanha virá a Maomé. Mas atenção: não é para quem quer, é para quem pode.

O importante é saber a verdade, que é como o azeite: vem sempre ao de cima, e mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. Só não estiquem a corda, pois quanto mais alto, maior é a queda. Cão que ladra não morde e quem não tiver um cão para caçar, que cace com gato. O pior é quando a curiosidade mata o gato. Tenham sempre a noção de que quem vai à guerra, dá e leva, pois podem ser presos por ter cão e também presos por não ter.

Tudo é preciso. Tudo é importante. É preciso fazer tudo.Uma pessoa deve experimentar. Não se deve falar mal das coisas sem se experimentar, mas é a falar que a gente se entende. Rir também é necessário, mas muito riso, pouco siso. Com pouco siso, a vida pode correr mal, mas não devemos chorar pelo leite derramado, pois perdido por cem, perdido por mil, e nunca devemos esquecer que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. E já agora, de grão em grão, enche a galinha o papo.

Uma das coisas mais importantes que me ensinaram é que mulher ao volante é um perigo constante. E não devemos pôr uma colher entre ela e o marido. É a lei. A lei é dura mas é para cumprir. A lei é a lei. É a vida. A vida é a vida. Só temos uma vida e a vida é para viver. Desde que haja saúde, não é? O amor é bonito e temos de ser uns para os outros. Hoje por ti, amanhã por mim. Temos é que seguir em frente, pois águas passadas não movem moinhos, o que é estranho, pois quem vive de passado é museu. Enfim, tudo está bem quando acaba bem. Quem ri por último, ri melhor. Até amanhã, se Deus quiser.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Portas Abertas

Paulo Portas falhou no malabarismo que sempre quis fazer entre ser cúmplice de medidas inevitáveis e ser o único escudo que compreendia e protegia o povo de ser pilhado até ao último cêntimo pela execrável máquina social-democrata. Tentou equilibrar-se no limbo, mas não conseguiu o melhor dos dois mundos. Mais: se à partida para esta legislatura, as diferenças ideológicas entre os dois partidos do poder eram tão óbvias em questões tão elementares como a do salário mínimo, a coligação nunca fez sentido. Foi criada em nome da estabilidade governativa em tempo de crise, mas parece ir culminar numa tentativa de Paulo Portas fazer uma fuga à lá Francesco Schettino, capitão do Costa Concordia.

Falamos aqui de Paulo Portas porque, apesar de ele se julgar oculto atrás da cortina, é ele o responsável pela moção do partido que o deifica, liderada por Pires de Lima e alicerçada por figuras proeminentes do CDS.

Os democratas-cristão escolheram bem a forma de voltar à oposição, com pregões esquerdistas, quer pela demagogia do conteúdo, quer por não serem explícitos na forma como (e por quem) serão pagos os aumentados salários. Admitem, de resto, a dificuldade de verem as suas propostas irem avante pela resistência dos sociais-democratas e da troika.

Encaro esta como a última auto-flagelação dos democratas-cristãos na tentativa desesperada de reganhar o eleitorado: tentam anunciar que há uma fórmula de ultrapassar a crise, e que essa fórmula já foi por eles encontrada, dentro do CDS e, consequentemente, dentro do Governo. Mas Passos, Gaspar e as instituições internacionais não deixam executá-la. A vil direita política, da qual o CDS parece querer demarcar-se, faz uso salazarista da maioria no parlamento e na coligação. Paulo Portas vai remando contra a maré ultra-liberal do PSD e dos credores e irá, ironicamente, afogar-se no populismo em que se refugiou.

domingo, 16 de junho de 2013

A tribo de Naftali


245.


"A alma humana é vítima tão inevitável da dor que sofre a dor da surpresa dolorosa mesmo com o que devia esperar. Tal homem, que toda a vida falou da inconstância e da volubilidade feminina como de coisas naturais e típicas, terá toda a angústia da surpresa triste quando se encontrar traído em amor – tal qual, não outro, como se tivesse sempre tido por dogma ou esperança a fidelidade e a firmeza da mulher. Tal outro, que tem tudo por oco e vazio, sentirá como um raio súbito a descoberta de que têm por nada o que escreve, ou que é estéril o seu esforço por ensinar ou que é falsa a comunicabilidade da sua emoção.

Não há que crer que os homens, a quem estes desastres acontecem, e outros desastres como este, houvessem sido pouco sinceros nas coisas que disseram, ou que escreveram, e em cuja substância esses desastres eram previsíveis ou certos. Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente com a naturalidade da emoção espontânea. E isto parece poder ser assim, a alma parece poder assim ter surpresas, só para que a dor lhe não falte, o opróbrio não deixe de lhe caber, a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na vida. Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento. Só não passa quem não sente; e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes, são os que vêm a passar e a sofrer do que previam e do que desdenhavam. É a isto que se chama vida."

- O Livro do Desassossego 

____




Bom resto de Domingo.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Independência ou Morte


turista
s. 2 g.
Pessoa que viaja por diversão ou recreio dentro ou fora do país.

(Em primeiro lugar, peço perdão por começar esta publicação com uma definição de dicionário. Este é um recurso bastante útil que pode ser, em certas ocasiões, bastante interessante, mas que infelizmente tem sido destruído de forma recorrente por pessoas que acham que a melhor forma de introduzir e fortalecer os seus conteúdos merdosos é com uma definição de dicionário ou com uma referência enciclopédica. No entanto, isso, por si só, não quer dizer nada. A popularidade dos Led Zeppelin em nada diminui o seu valor. Mas a expressão e a disseminação de clichés é algo que eu tento combater com a mesma intensidade e com o mesmo espírito do antagonismo visceral que separava os cristãos e muçulmanos nas Cruzadas. Nesse sentido, espero que não seja necessário voltar a utilizar esta ferramenta e aproveito para dizer que por mais vezes que a M80 se esforce em destruir a “Stairway to Heaven”, esta continua a ser um verdadeiro pináculo de glória artística, cuja grandiosidade jamais será destruída pela sua repetição radiofónica quase diária.)


Eles saem das estações com olhares confusos e tentam decifrar a montagem hipnotizante de ruas no mapa. São famílias inteiras, numerosas, com mochilas e garrafas de água, câmeras fotográficas e chapéus, chinelos e óculos escuros. Este é o tipo de pessoas que vai a Paris só para subir ao cimo da Torre Eiffel, esperar duas horas para ver a moldura minúscula da Mona Lisa e passar por debaixo do Arco do Triunfo. A diferença entre um turista e um viajante está bem definida no imaginário global de clichés, mas esta é uma ideia que é importante reforçar: o meu ódio por turistas não tem e nunca terá um fim.

Eu percebo que esta questão apresenta imediatamente um paradoxo. Odiar turistas enquanto se é, relutantemente e por definição, um turista, é uma falha que debilita o argumento. No entanto, a diferença entre um turista e um viajante é um cliché e é real. Os viajantes chegam a Veneza, perdem-se na cidade, e ficam encantados ao andar e descobrir cantos, praças e esquinas que antes existiam apenas no império das possibilidades arquitectónicas. Os turistas chegam a Veneza, pagam cinquenta euros para andar numa gôndola enquanto um italiano desafinado berra e navega-os com uma vara, comem pizza e fazem questão de pedir ketchup.

Estes cabrões existem mesmo. São eles que compram as chávenas com frases engraçadas e as t-shirts que proclamam amor por uma cidade que conhecem há dois dias. Em todas as minhas viagens, eles estão comigo, na minha frente nas filas, a criar tráfego na saída do metro, a pedirem direcções para a rua onde estão, a fingirem apreciar obras de arte em museus onde gastam cinco segundos de atenção num quadro.

Os americanos conseguem ser os piores. Isto é gente que ultrapassou a fronteira da obesidade mórbida e decidiu testar os limites do engenho divino. O corpo humano tem mesmo capacidades que eu desconhecia. A pele estica e ganha uma elasticidade plástica industrial. Eles têm pernas grossas como troncos de árvores milenárias. Numa certa luz, não é possível ter a certeza onde acaba o homem e onde começa o elefante. E para piorar, eles procriam. E fazem questão de manter os monstrinhos numa dieta que mataria um pequeno dinossauro.

Eu sei que a crise económica é uma tragédia terrível e que o turismo é um sector económico importantíssimo para um país relativamente pobre e periférico como Portugal. Mas eu acho que chegou o momento de acabarmos com o nosso esforço de divulgação internacional. Acho que política adequada deve ser uma de sigilo. Portugal deve ser um segredo bem guardado. Quem por acaso vier aqui e gostar, que conte aos amigos. Isto aqui é uma choldra, mas é a nossa choldra. O Porto não é Veneza e Lisboa não é Paris. Eu temo pelo dia em que este belo país seja inundado pelas hordas mastodônticas de bisontes turísticos e que, ao tentarmos criar um país agradável para os outros, acabaremos por esquecer de criar um país agradável para nós próprios. Ao contrário do que o Algarve nos dá a entender, este não pode ser um país só para inglês ver.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Do riso



Vou relatar um inconspícuo episódio entre um senhor paraplégico e uma senhora cega. Como se reveste da lente surrealista-demencial do João César Monteiro, e também para postergar mal-entendidos, insurjo-me, então, na profiláctica apologia dos de sua condição. É imediata. Aliás, basta pensar nos primeiros segundos de um dia. A eles concernentes, partilho com toda a generosidade que me é atribuível as minhas experiências diurnas, ainda de pijama e hálito fétido. São em considerável menor número as ocasiões onde os prometidos efeitos revitalizantes do descanso do guerreiro são sentidos na plenitude da sua justiça. Mais vezes me proponho a celebrar a santidade de um colchão e procedo à extensiva desconsideração de tudo o que lhe é ademais. Ora bem, pois que assim seja. Não há como não as caracterizar de abençoadas, sem excepção às manhãs onde a preguiça se figura indúctil. Aqui, toda a nossa glória consiste em portarmos a evocação dos sentidos e a liberdade da mobilidade, inclusivamente quando os depomos e só queremos, por mais cinco minutos (que vão ser no mínimo dez), permanecer de olhos fechados e comodamente acamados. Translademos, em conjunto para custar menos, para as suas nada invejáveis realidades, nas manhãs, também de pijama e hálito fétido: abrir os olhos para nada ver; e ter a mesma imobilidade, quer adormecido quer desperto. Sou insensível a qualquer discurso pró-vida, no que à minha diz respeito, relativamente a contingências que alquebrem de forma tão flagrante a necessária diferença substancial entre estar a dormir ou acordado. São muralhas da condição e consciência humanas excessivamente infaustas para o exercício da sua existência me parecer minimamente suportável. Pelo menos, sugeriria como condição irrevogável, de forma a persistir vivo neste berlinde-azul sideral, a erradicação da expressão “bom-dia!”. Num mundo de insondáveis critérios e atribuições, felicito-me sem desassombro por estar aleatoriamente do lado favorável das probabilidades. Têm, portanto, a minha irrelevante e incondicional reverência, estratificada na minha incompreensão, perante a sua coragem. 

De resto, há uma figura histórica cega-surda com quem é impossível não simpatizar: Helen Keller. A sua história de vida tem uma componente sobrenatural de difícil equivalência. Nascida a 1880, Helen Keller foi a segunda pessoa cega-surda americana a adquirir educação significativa na língua anglo-saxónica, quinze anos após Laura Bridgman, que ultrapassou largamente em capacidades. Precisamente compelida por ter lido acerca da bem-sucedida história de Laura, num livro de viagens de Charles Dickens, a mãe de Helen procurou um médico local, Julian Chisolm. Este, por sua vez, indicou Alexander Graham Bell, na altura dedicado a educar crianças surdas, à família Keller, que recomendou a inscrição de Helen na instituição onde Laura havia recebido a sua instrução, o Instituto for the Blind em Perkins. Aí conheceu Anne Sulivan, primeiro como mentora por designação do director da escola, tendo como resultado uma cúmplice e co-habitacional relação só desfeita 49 anos volvidos, devido à morte prematura de Anne. Entretanto, tornou-se na primeira dentre dos de sua condição a tirar um curso superior, em filosofia. Antes, Anne ensinara-lhe linguagem gestual, indispensável para a retirar do vácuo lógico que o desconhecimento da linguagem induz. Suprimida esta primeira muralha, aprendeu a falar, ao ler tactilmente os lábios de alguém enquanto o fazia – a explicação deste fenómeno, que confesso me transcende, é atribuída à apurada e exacta sensibilidade táctil de Helen. Não satisfeita, passou a dominar francês, latim e alemão. Não restam dúvidas quanto à enormidade desta evolução, que Mark Twain, seu amigo e confesso admirador, descreveu não excessivamente como milagrosa. Permitiu-lhe ser uma autora prolífica, activista política, oradora e jornalista. Mais: transformou-se inevitavelmente na embaixadora maior dos portadores da sua deficiência, ao outorgar-lhes inaudita voz, bem como através da criação de uma organização, com o seu nome, dedicada a investigação médica na área. 

Além de Alexander Bell e Mark Twain, foi próxima de Charlie Chaplin, entre outras figuras proeminentes. Conheceu directamente 14 Presidentes dos EUA diferentes. O governo japonês chegou ao cúmulo da consideração ao dar-lhe um novo cão da raça Akita quando o que tinha morreu. No desenho da linhagem dos seus antepassados, foi descoberto que tinha um ancestral suíço, o primeiro em terras helvéticas a ser professor especializado em surdos. Em relação a essa coincidência, escreveu na sua obra autobiográfica – ainda aos 22 anos, com a ajuda de Anne - que “não há rei que não tenha tido um escravo entre os seus antepassados, e não há escravo que não tenha tido um rei entre os seus". Tudo é dramaticamente poético. Tudo é inegavelmente heróico. Só um invulgar espírito como o que lhe é reconhecido seria hábil em desenvolver-se e expressar-se de forma tão lúcida e positiva neste contexto de défice sensorial, de consciência cavernosa - negra, silente e, inicialmente, inacessível. Uma vénia.

O episódio. Parece demasiado bizarro, mas não há como desconfiar para desacreditá-lo, por ter sido uma senhora de idade a mo relatar. Fê-lo com o pudor pincelar de uma alma indulgente, afectando no discurso a sua clarividência. Tive de perguntar: “está a dizer-me que no cortejo um senhor paraplégico e uma senhora cega pretendiam andar à pancada, com uma mesa pelo meio?” Confirmou. Indaguei quem havia saído vitorioso de sangrenta contenda, ao que me redarguiu para não brincar com este tipo de assuntos. Fiz, então, a pergunta que devia ter feito antes: “porquê?” Aparentemente, uma desavença qualquer irrelevante, imprópria e inimaginável de redundar na declaração de pancadaria mais pacífica alguma vez já feita. Somente não sei que leitura fazer acerca da mesa, porque nunca num cortejo vi uma. Talvez como elemento ficcional que sustenta uma qualquer moralidade implícita. Como acontece no Big Fish, de Tim Burton. Ou na Bíblia. O que é possível, basta atender que a mesa ostentaria tanto poder ofensivo (quem consegue dizer que os seus mindinhos não sofreram perante as mesas ou o mobiliário doméstico em geral?) quanto as facções beligerantes.

Paraplégicos lutam com cegas. Hollande diz que a crise europeia acabou. António José Seguro vai ser o próximo Primeiro-Ministro de Portugal. 4 pessoas morrem por causa de um centro comercial. O que é possível fazer que não rir? Henri Bergson entendia o riso como um fenómeno que seria reflexo do confronto com algo anormal, tendo então contornos correctivos. Mas é mais: é uma declaração de independência. É o refúgio da sanidade num mundo que tantas provas de falta de sentido dá.

(comentários do tipo "vai estudar Matemática, bandalho" serão automaticamente apagados)

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Uma Sumária Retrospectiva Futebolística


Correndo o risco de ver este pedido de desculpas esbarrar na sua indiferença, caro leitor, não poderia deixar de começar por me penitenciar pela minha prolongada ausência. Posto isto, e porque terminou hoje definitivamente a época futebolística nacional com o amigável da selecção, gostaria de partilhar algumas curtas considerações sobre a temporada que agora finda.
Começando pelo fim (algo menos convencional mas mais conveniente) a equipa das quinas deixa-me sensações mistas. Uma sensação de que Paulo Bento está a confinar o crescimento da equipa, que sem a sua inábil contribuição poderia estar já a pensar no Mundial. Os seus erros são tão pornográficos que parece desnecessária a sua enumeração: João Pereira, Meireles e Postiga já passaram há muito o prazo de validade; e, dos quatro médios portugueses do Braga, Bento sempre convocou todos menos o melhor - entretanto transferido para as Arábias, chora o pobre mas honrado futebol nacional. Continua a haver potencial humano inegável. Muitos dos jogadores que brilharam na selecção na última década não indiciavam, no início da carreira, tanto potencial futebolístico como o que evidenciam já alguns jovens jogadores. Terá, naturalmente, é de ser-lhes dados jogos nas pernas antes de aterrarem na Roménia, Suíça ou Chipre. Nesse sentido, o regresso das equipas B será seguramente um grande incentivo. A crise talvez ainda mais.
O Porto foi campeão, e assumo que foi o título nacional que mais prazer me deu ver o meu clube a conquistar. Todos os anos o título nacional é previsível, esperado, comum. Este ano tornava-se altamente improvável. Daí que, quando o Kelvin desferiu aquele pontapé orgásmico, eu tenha festejado como um benfiquista; partilhava com eles, antes desse golo, a sua habitual descrença e rendição. Precisei de descer à terra para me aperceber do quão boa é a liberdade de voar. Não insistirei mais neste ponto, por respeito pelos dois benfiquistas que comigo partilham este espaço. Mas juntar o útil (saída de Vítor Pereira) ao agradável (conquista do campeonato) foi o desfecho ideal para uma temporada que se adivinhava trágica depois de três penalties falhados pelo Jackson, da exibição do Porto em Málaga e da Taça da Liga perdida para uma equipa que não conseguiu ficar à frente do Paços.
De resto, este final de temporada tem sido caracterizado por uma inauditamente precoce movimentação nos mercados. Ainda a final da Liga dos Campeões não tinha sido jogada, e já o melhor jogador de um finalista havia assinado contrato com o outro. Temos sido bombardeados, de há um mês para cá, com uma avassaladora quantidade de transferências asseguradas, rumores de empréstimos, treinadores em novos bancos. Um fenómeno habitalmente mais tardio, mas que a ausência de uma grande competição em anos ímpares (a Taça das Confederações são amigáveis glorificados), a noção por parte dos clubes de que o mercado está mais competitivo que nunca e a sofreguidão noticiosa justificam facilmente.
Há mais um novo rico no mercado, e dou-lhes as boas-vindas, acima de tudo porque fazem a aposta inteligente de confiar em antigas glórias do clube mais competente do planeta do futebol. Terão de ter cuidado os monegascos, porém, com um Platini cada vez mais dedicado a questões financeiras, impondo regras de fair play financeiro e tendo inexequíveis ideias de tectos salariais e equilibrios utópicos da balança comercial dos clubes. Sendo o clube francês, pode safar-se.
Poderá ser injusto assumir-se como efectivo que as altas instituições futebolísticas estejam tão preocupadas com o dinheiro. Veja-se, por exemplo, a escolha do Qatar para acolher o Mundial. Foi uma escolha atenta a tantos critérios logísticos que, só depois do anúncio, se aperceberam de que faz lá muito calor e o melhor seria realizar a competição no Inverno. O que levou a FIFA a escolher esse minúsculo e escaldante país, onde o petróleo é mais barato que a água (e que a cerveja, que é proibida) para acolher a maior competição desportiva do mundo? As infraestruturas, a cultura futebolística, a geografia ou a demografia? Talvez. Ou talvez isto.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Animais e Cocó

Uma pessoa muito importante (imagino) disse que o valor de uma sociedade deve ser medido através da observação do tratamento dos animais. Eu discordo dessa asserção. Qualquer sociedade digna do epíteto de “moderna” ou “desenvolvida” ou “justa” trata mal os seus animais. O avanço civilizacional do Ocidente apenas foi possível através da desapropriação sistemática do espaço vital das outras espécies animais (com a excepção, claro, do rato, da barata, das pombas e das gaivotas – esses seres odiosos).

A sociedade mata, enjaula, fere, manipula e tortura animais. São usados para alimentação, protecção e prazer. A tortura, especialmente a tortura, não deve ser subentendida como uma forma de sadismo barato. Apesar da altivez da retórica vazia que é preconizada pelos fanáticos dos direitos dos animais (até já criaram um partido político, vejam só), a raça humana, em grande parte, apenas faz aquilo que é necessário para sobreviver da melhor forma possível.

Eu adoro viver na cidade. Adoro o conforto, a segurança, a mobilidade e a vitalidade. Gosto de água limpa e canalizada. Gosto do pavimento e do asfalto. Gosto da conveniência. Adoro os prédios e as casas. Tudo isto existe através do sofrimento animal. Nunca vi um vegetariano que, apesar de não comer carne e de não barrar a sua torrada com manteiga, abdique de todos os confortos da vida moderna que possam, de alguma forma, ter uma ligação ténue com o sofrimento animal. Este tipo de inconsistência lógica no discurso dos amigos dos animais é a prova final de rectitude do domínio do Homem sobre os animais.

Se alguns patos têm que comer em excesso de forma que eu possa apreciar um sublime foie gras, se algumas vacas têm que ficar presas de forma que eu possa adicionar leite ao café, se algumas espécies de rã sejam extintas de forma que as populações pobres da Amazónia possam enriquecer, que assim seja. Se, por acaso, forem pessoas especialmente sentimentais, tirem uma foto ou gravem um vídeo das espécies em desaparecimento. Entre uma auto-estrada e o lince ibérico, que corram os rios de alcatrão. Esse é o custo do progresso.

Aliás, na minha opinião, o valor de uma sociedade deve ser medido de outro modo. Esse valor deve ser estimado através da observação da forma como uma sociedade se descarta dos seus detritos humanos, nomeadamente urina e fezes. E nesse aspecto, devo dizer, Portugal já não é um país de primeiro mundo. Quem utiliza regularmente os transportes ferroviários, saberá que recentemente as entradas dos lavabos da Estação de São Bento passaram a serem maneadas por um vigilante que exige dinheiro para que possamos usufruir dos frutos civilizacionais sanitários. Assim, voltamos as costas à herança da canalização greco-romana e damos um passo firme em direcção aos esgotos de céu aberto da África subsariana.

Eu sou a favor do sector privado. Eu acredito que devemos privatizar quase tudo. Mas quando chegamos ao ponto de cobrar dinheiro na entrada das casas-de-banho públicas, meu deus, tragam de volta os socialistas e a sua demagogia do serviço público e direitos adquiridos. Por este andar, vou-me deixar de preocupar com os correios, os serviços médicos do meu presente ou as pensões do meu futuro. Vou-me preocupar com o dia que, na ânsia de tapar o buraco das contas públicas, passemos a ter que cavar outro tipo de buracos.

domingo, 2 de junho de 2013

A tribo de Naftali


338.


"Sempre me tem preocupado, naquelas horas de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmo como indivíduos que somos outros para os outros, a imaginação da figura que farei fisicamente, e até moralmente, para aqueles que me contemplam e me falam, ou todos os dias ou por acaso.

Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como directamente realidades físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós.

Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que me vêem, como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia. Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, nunca há espelho que nos tire de nós mesmos. Era precisa outra alma, outra colocação do olhar e do pensar. Se eu fosse actor prolongado do cinema, ou gravasse em discos audíveis a minha voz alta, estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de lá, pois, queira o que queira, grave-se o que de mim se grave, estou sempre aqui dentro, na quinta de muros altos da minha consciência de mim.

Não sei se os outros serão assim, se a ciência da vida não consistirá essencialmente em ser tão alheio a si mesmo que instintivamente se consegue um alheamento e se pode participar da vida como estranho à consciência; ou se os outros, mais ensimesmados do que eu, não serão de todo a bruteza de não serem senão eles, vivendo exteriormente por aquele milagre pelo qual as abelhas formam sociedades mais organizadas que qualquer nação, e as formigas comunicam entre si com uma fala de antenas mínimas que excede nos resultados a nossa complexa ausência de nos entendermos.

A geografia da consciência da realidade é de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos. E tudo me parece, se medito de mais, uma espécie de mapa como o do Pays du Tendre ou das Viagens de Gulliver, brincadeira da exactidão inscrita num livro irónico ou fantasista para gáudio de entes superiores, que sabem onde é que as terras são terras.

Tudo é complexo para quem pensa, e sem dúvida o pensamento o torna mais complexo por volúpia própria. Mas quem pensa tem a necessidade de justificar a sua abdicação com um vasto programa de compreender, exposto, como as razões dos que mentem, com todos os pormenores excessivos que descobrem, com o espalhar da terra, a raiz da mentira.

Tudo é complexo, ou sou eu que o sou. Mas, de qualquer modo, não importa porque, de qualquer modo, nada importa. Tudo isto, todas estas considerações extraviadas da rua larga, vegeta nos quintais dos deuses exclusos como trepadeiras longe das paredes. E sorrio, na noite em que concluo sem fim estas considerações sem engrenagem, da ironia vital que as faz surgir de uma alma humana, órfã, de antes dos astros, das grandes razões do Destino."

- O Livro do Desassossego

______


Bom Domingo.