segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Série “A Esquerda Portuguesa” – 1ª Parte – A Esquerda Ilustre


“Eu gostaria que ele (António José Seguro) fosse mais activo, mas ele agora, há pouco tempo, até tem-se portado muito bem, na medida em que tem tido um comportamento em que o Partido Socialista está à andar para a esquerda, como deve ser. Como aliás é o Partido Social-Democrata. O Partido Social-Democrata sempre foi um partido de esquerda com o Sá Carneiro. É por isso que mais de metade ou dois terços do Partido Social-Democrata não está com este Governo. “

“Por que a América saiu da crise? Porque fabrica moeda. Quando o Banco Central Europeu fabricar moeda, é evidente que tudo isso passa.”

“Sou político. Não sou homem de negócios.”
– Mário Soares

É uma história que se repete nas refeições familiares em todo o mundo desenvolvido. Os protagonistas desta história são os pais e uma criança. No prato do rebento é possível observar a materialização do empreendimento materno de oferecer uma refeição completa, nutritiva e marginalmente saborosa (nessa ordem de importância). A criança, no entanto, desconfia das boas intenções da progenitora e vê nas ervilhas, nos brócolos e no repolho, uma tentativa chocante de envenenamento. A criança come de bom grado o arroz, as batatas e a carne, mas os legumes e os vegetais, esses desgraçados, são postos de lado, descartados, escondidos debaixo do arroz e inseridos furtivamente num guardanapo, que é enrolado e colocado no bolso, para mais tarde ser sumariamente despejado numa sanita.

Esta é uma situação recorrente ao longo da infância. Todos os dias é uma batalha. Há choradeira e birras. Os pais continuam a insistir nas histórias das vitaminas e nas sagas do crescimento. A criança continua a tentar fugir do horror gustativo que são as couves-de-bruxelas. Às vezes, tudo acaba em palmadas. Noutras ocasiões, a criança é enviada para a cama com o estômago vazio. Os pais sentem culpa, pois as tácticas mais cruéis não dão resultado. Então eles tentam apelar à razão e contam à criança como em todo o mundo existem meninos e meninas a passar fome e, por isso, desperdiçar comida não é apenas um pecado cometido perante a entidade invisível e barbuda dos céus, ou um crime perante o seu próprio corpo, mas uma crueldade perante seres inocentes exactamente iguais a ele. Os pais julgam ter acertado na mudança de estratégia. A crueldade e a rigidez dão lugar ao apelo à empatia infantil. O que escapa aos pais, devido ao efeito ofuscante do amor, que nesta instância tem uma função semelhante a um par de faróis ligados na sua variação máxima, é que as crianças são, em certa medida, uns pequenos sociopatas. Eles têm a capacidade alarmante de serem alheios ao sofrimento dos outros, inextricavelmente absortos nos seus próprios umbigos. Não podemos culpar os pais, a quem é quase impossível convencer de que o sangue do seu sangue não é o ser mais especial do mundo, nem podemos culpar a criança, cuja curta existência apenas consistiu num processo prazeroso contínuo de saciação de todas as suas necessidades, e dificultou assim a formação completa de um sistema de empatia racional e emocional.

O que se deve retirar desta história é que os conflitos nunca devem ser simplificados. Devemos sempre abordá-los com tacto. A Esquerda Ilustre, sobre quem quero aqui dissertar, vive neste dilema pedo-leguminoso. Não podemos culpá-los sobre quem eles são. Não podemos limitar a crítica a uma série de ataques pessoais ou à expressão de uma discordância ideológica com raízes técnico-científicas. A existência da Esquerda Ilustre é, acima de tudo, uma tragédia grega clássica. É a subjugação da vontade humana aos caprichos do destino. É triste e desconcertante. A genética e a cultura conspiram para determinar os fenómenos sociais e o papel que me proponho é o de um espectador interessado que pretende dissecar estas duas vertentes, isolar relações de causalidade e, como não podia deixar de ser, especular. Apenas é possível falar sobre a Esquerda Ilustre portuguesa tendo a noção da sua existência trágica neste dilema fatalista. A Esquerda Ilustre tem um passado, que não pode ser negado. A Esquerda Ilustre tem um presente, que deve ser escrutinado objectivamente. A Esquerda Ilustre tem um futuro, mas não tem futuro, algo que será evidente, se aceitarem os meus argumentos, pois aqui proponho que esse futuro deverá consistir num declínio gradual e cruel, que, se tudo correr bem, acabará numa queda repentina até o eco do fundo da irrelevância no poço do obsoletismo e um transferência habitacional para o parque eterno das mutações socioculturais falhadas.

O princípio desta tragédia tem o seu início onde todos os eventos tendem a começar: no final de outra tragédia. O choque do regicídio que pôs fim a oitocentos anos de monarquia, o caos funesto da Primeira República; a herança traumática de quarenta anos de ditadura moveu, talvez de forma irremediável, o centro de gravidade da política portuguesa para a Esquerda. Saímos debaixo do silêncio do manto real, passando para o afago seco da mama republicana, encontrando abrigo na jaula da obediência, onde até hoje nos mantemos. Os nossos partidos, nas suas diversas emanações do espírito nacional, são dessa forma partidos socialistas de um espectro fenomenológico variado, que inclui correntes tão díspares como a social-democracia benigna, o socialismo nominal, o marxismo açucarado, maoísmo depravado, o trotskismo chique e o estalinismo ortodoxo. Dando o nome aos bois, a Esquerda Ilustre aglomera fatias significativas do Centro Democrático Social, grandes fatias do Partido Social-Democrata e quase a totalidade do Partido Socialista.

É a esquerda que pensa que é direita, a esquerda que tem vergonha da direita e a esquerda que sabe que é de esquerda. Esta é a esquerda das falácias lógicas, dos enviesamentos ideológicos, das distorções históricas, das narrativas convenientes e da incompreensão generalizada da realidade. A esquerda que capturou o imaginário ideológico português. A esquerda que idealiza a natureza humana e ignora o mais básico senso comum. É a ideologia maligna do egocentrismo e da prepotência. É a ideologia dos que vivem sob a ilusão de que são agentes messiânicos da mudança, os grandes manuseadores da alavanca económica e magnânimos guardiões dessa entidade abstracta nociva que é o Povo. São os que vêem o país em chamas e ainda questionam se um pouco de água é, de facto, a melhor solução. São os que pensam no mercado como um mal necessário, uma droga a ser usada com moderação, como se fosse possível combinar o melhor de Karl Marx com o melhor de Adam Smith. Nas suas cabeças, eles estão dispostos a atirarem-se no lamaçal e a deitarem-se com os porcos capitalistas, mas apenas para realizar a Obra e para alimentar o povo. O que eles não entendem é que, pelo menos em Portugal, é impossível conciliar o liberalismo com o socialismo. Um dos lados tenderá a prevalecer nesta dialéctica e, ao contrário do discurso vigente, quem tem vencido é o socialismo da Esquerda Ilustre.

Este socialismo comete o erro de simplificar a análise da natureza do Homem. A Esquerda Ilustre, como toda a Esquerda, julga que a acção correcta é valorizar o colectivo. O erro é julgar que o colectivo é definido por laços ténues de patriotismo e civismo, ao invés dos laços inexoráveis do afecto e do amor. Na realidade, os adultos não passam de uma continuação racional da adorável síndrome de sociopatia infantil. O amor ensina a sacrificar a individualidade em prol do colectivo mais próximo, mas a Esquerda Ilustre pensa que é possível pegar nesta dinâmica e aplicá-la no Povo, ignorando os instintos mais básicos do Homem. Os mesmos instintos que fazem com que o mercado livre funcione. Os instintos que deram ao Homem as ferramentas para acabar com a existência miserável, bárbara e curta das Cavernas e iniciar a vida livre, longa e gloriosa das Cidades. Apesar de ser a associação miraculosa do mercado livre que alimenta o mundo, a Esquerda Ilustre não hesita em cuspir nesse prato. O mercado livre e o liberalismo são os bodes expiatórios eternos, que criam, inovam e transformam como forças sem paralelo histórico, mas são crucificados na praça pública e saqueados pelo aparelho socialista, com a justificação absurda de que não são forças perfeitas. Nessa lógica imperativa da Esquerda Ilustre, uma crise financeira não é uma ocorrência natural das acções imperfeitas de seres imperfeitos a actuarem livremente no mercado livre. As crises financeiras são o resultado de um sistema maligno que dá demasiada liberdade aos selvagens do capital e, portanto, cabe ao Estado, na sua infinita e inquestionável perfeição, rectificar a acção do ultra-neoliberalismo.

Toda esta teorização apenas é possível devido às mentes brilhantes responsáveis pela criação dos diversos partidos que se inserem na Esquerda Ilustre. Os criadores dos partidos eram, maioritariamente, homens provenientes de famílias da classe média e alta, com estudos superiores, inseridos num país pobre com uma população com níveis de escolaridade baixos ou inexistentes. São homens que tiveram a sorte de viajar e conhecer as sociedades livres dos outros países europeus. Essa existência criou um juízo natural de superioridade perante o Povo - uma entidade que já era rebaixada e contida pelo autoritarismo do Estado Novo. Dessa forma, esses homens sentiram-se qualificados para libertar a nação e proteger o Povo. Eles frequentaram o ensino superior e viveram o início da idade adulta no meio da glorificação dos valores associados à Esquerda durante a Guerra Fria. Eles observaram a acção diabólica dos imperialistas americanos contra as diversas revoluções socialistas espalhadas pelo mundo. Eles ficaram chocados com o assassinato do Che Guevara e apaixonaram-se pelo mito do mártir. Eles gostaram da narrativa de homens predestinados a guiarem o Povo. Eles queriam a glória da revolução explosiva, que é muito mais divertida e excitante do que a cautela conservadora. Eles preferiram o encanto morno dos sonhos ao frio desapontante da realidade. O confronto eufórico ao invés da discussão faseada.

No entanto, estes não eram homens estúpidos. Eram homens que sabiam que o mercado livre funcionava, mas que se deixaram seduzir pelo fascínio entorpecente do poder. Eram homens que sabiam que a melhor forma de terem o seu momento de glória era deixar o capitalismo funcionar como uma espécie de excepção à regra socialista. Eram homens que sabiam que, depois do fascismo e da monopolização da narrativa de luta pelos comunistas, a única forma de ganhar eleições era saber dosear a retórica. Mas estes não são homens dados à causa. São mártires que não querem ser martirizados. Cristos que não querem ser crucificados. São homens que sabem apreciar a vida. Gostam de bons carros e de boa comida, de relógios caros e de fatos que assentam na perfeição. São os homens que sabem que, quando a morte bate à porta, a melhor coisa a fazer não é esperar na fila misericordiosa dos hospitais públicos, mas sim ficar nas mãos da excelência expedita do sector privado. Quando o pai da Esquerda Ilustre, Mário Soares, teve uma “indisposição”, ficou internado no Hospital da Luz, um centro médico privado de prestígio. Quando a Presidente brasileira, Dilma Roussef, teve cancro, recebeu o tratamento no Hospital Sírio-Libanês, um dos melhores hospitais privados da América Latina. O ex-presidente brasileiro, Lula da Silva, recebeu tratamento no mesmo hospital. O antigo presidente paraguaio, Fernando Lugo, recebeu tratamento para cancro no mesmo hospital brasileiro. Quando o falecido presidente argentino, Nestor Kirchner, foi diagnosticado com cancro, recebeu o tratamento, no Sanatorio de Los Arcos, um renomado hospital privado argentino. O presidente do Equador, Evo Morales, recebeu tratamento para cancro numa “clínica privada de Cochabamba”. O único que tomou uma conduta diferente foi Hugo Chavez, o falecido presidente venezuelano, que recebeu tratamento para cancro nos famosos hospitais públicos de Cuba, de forma a manter-se em sintonia com os ideais da revolução bolivariana. Assim como Hugo Chávez, os líderes da Esquerda Ilustre sabem que é o populismo que ganha eleições mas, ao contrário de Hugo Chávez, eles sabem que é a hipocrisia que salva vidas.