terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Duque

A morte gosta de brincar com a presa antes de acabar com ela, como o sádico gato que ela é. Pega-nos pela cauda, estrebuchamos de cabeça para baixo, convulsivamente. Larga-nos por um segundo em que julgamos poder escapar, para nos encurralar num canto da vida em que, conformados, desistimos.
A chuva avisou-me de que algo estava errado. Não era uma precipitação agressiva, de pureza invernal, antes melancólica, desalentada como se, noticiada a sua morte, tivesse também ela perdido a esperança e as forças.
No bar não chovia. Decorria a primeira festa do ano lectivo, cheirava a euforia e a deboche. Apoiado na muleta, o Duque observava os colegas junto ao balcão. Dirigi-me a ele.
- Faço-te companhia. Não gosto de dançar.
- Estou só a descansar.
- Bebemos?
- Bebemos. Pago eu. Dois shots de tequila.
- Odeio tequila.
- Eu odeio pagar.
Escorregou bem, afinal.
- Como te chamas mesmo? Só te conheço por Duque.
- Agostinho.
- Não sabias ter um nome mais feio? O que é isso, um Agosto mais curto?
Riu-se. Lembro-me de comentar com um amigo, no dia seguinte, que fiquei admirado com a sua disposição, fulgor físico e resistência ao álcool, depois de todas as bebidas que se seguiram. Admirado. Como se o normal fosse ceder, prostrar-se sem dignidade, como se todo o ser humano devesse admitir que é naturalmente frágil e desistir perante esta condição.
Agarrou a outra muleta, que descansava encostada ao balcão.
- Onde vais?
- Eu estou morto, Diogo. Não interessa onde eu estou.
Não dei por ele partir. Terá deslizado porta fora, com a suavidade que a perna amputada já não permitia, despido dos pesos que a puta da vida lhe atirara, e que ele carregou nas costas com a tenacidade dos campeões. Perdeu a perna e a mãe para o impiedoso monstro negro, que decidiu brincar com a presa mais um bocado. A vida não tortura por malícia, fá-lo por indiferença. Despreza-nos como vermes; ninguém estará lá para a raça humana senão ela própria. Se para a vida somos células imprestáveis, resta-nos sermos, uns para os outros, memórias comuns, felicidades partilhadas.
Existem provas testemunhais de casos de força sobre-humana em situações desesperadas. Há casos de pessoas que, movidas por uma inconcebível adrenalina, conseguiram levantar carros que haviam caído em cima de outras. Talvez o Duque nunca tenha sido mais forte do que nós. Talvez só tenha tido mais carros para levantar. Talvez só tenha criado mais anticorpos contra a descrença, contra a desilusão. Se o Duque foi capaz de bloquear os socos da vida com uma pujança homérica até ao golpe final, talvez o que com ele podemos aprender é que todos nós somos deuses acorrentados, prontos para combater o desprezo que o universo nos reserva, agarrando-nos enraivecidamente a esta coisa estranha e milagrosa chamada vida.
Vou pedir mais um shot. Brindemos juntos ao Duque.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Plural de Praxe

Ressalvo, primeiramente, que esta pequena acha que lanço para o incêndio mediático que se alastra no país não se trata de uma resposta à opinião do meu amigo Leandro, cuja leitura, de resto, recomendo vivamente. Conservassem todos os que teceram considerações sobre o assunto a sua astúcia. Raramente os humildes cronistas deste espaço repetirão temáticas já exploradas por outro, e isto acontece sobretudo porque partilhamos grande parte das opiniões sobre grande parte dos assuntos e não há necessidade de redundâncias. Neste caso, porém, considero pertinente partilhar uma opinião de alguém manifestamente integrado e interessado, como é o meu caso.

Reitero que também eu fui rejeitando fazer parte deste insano furacão, para que a praxe conservasse alguma da pouca virgindade que lhe resta, mas essa foi já definitivamente e erroneamente rasgada. Este texto não se trata, no entanto, de uma apologia reaccionária da tradição praxística. Muito menos explorarei aqui, em espaço desapropriado, questões que considero irem além daquilo que a sociedade civil merece saber. Discorrerei, portanto, numa análise que prometo ser tão fria quanto a minha exasperação me permita.

Assim sendo, começo por dizer que compreendo a indignação anti-praxe. Não as dimensões que atingiu, nem os moldes com que é exposta, mas a aversão que a origina. Mesmo antes da implosão atómica desta bomba de cólera, já o afirmava: a praxe tem, aos olhos estranhos dos elementos que de fora a observam, contornos bizarros. Daí que os seus preceitos sejam apreendidos gradual e internamente, para que surjam contextualizados e não através de infografias no telejornal. Entendo a estranheza que a praxe causa àqueles que não a compõem, principalmente quando os media noticiam apenas o lado negro da mesma. E é natural que assim aconteça: a praxe bem feita não suscita interesse alheio ou jornalístico. Mesmo quando existem pequenos abusos, tratam-se de questões que podem e devem ser resolvidas pelas pessoas envolvidas.

A sociedade civil vê-se implicada, isso sim, quando os abusos cometidos se tratam de crimes graves. Li já por aí que esta é uma óptima oportunidade para a praxe se abrir à sociedade, expor as suas virtudes, porque "quem não deve, não teme". Este é o mesmo tipo de falácia argumentativa que legitima uma sociedade orwelliana, que justificaria câmaras dentro de todas as casas porque em algumas existem casos de violência doméstica. A privacidade e o secretismo são direitos que são retirados a quem deve, e não a quem não deve. Dito isto, o pacto de silêncio da comunidade praxística da Lusófona causou muita indignação, mas se for aplicada exclusivamente à comunicação social, e naturalmente nunca alastrada às entidades judiciais e às famílias das pessoas envolvidas, é uma decisão sensata, na medida em que impede a proliferação de versões contraditórias e porventura inventadas, em respeito do sobrevivente que tem, ele sim, de esclarecer a situação; mas teve também o condão de aumentar a curiosidade e fúria contra esta sociedade secreta.

Como o Leandro bem explicitou, a praxe tem poucos alicerces racionais passivos de serem usados para justificar a sua existência a alguém de fora, e raramente vão para além do saturante, mas legítimo, argumento da integração. Talvez esta dificuldade de explicação lógica justifique o prazer dela retirado. Todos sabemos que a vida é uma corrida de obstáculos que, de forma a estes serem contornados, tem de ser vivida de forma lógica, coerente, inteligente. O que torna, desde logo, grande parte desse percurso entediante. O que a vida traz de bom, no entanto, são os prazeres inviolados por essa racionalização. Futebol. A companhia de uma mulher. O cheiro de um livro antigo. Praxe. Pequenos deleites que têm origens que extrapolam a vertente lógica. Se ignorarmos a emotividade do prazer, de nada serve a frieza da racionalização. Ou se conjugam os dois pólos ou o suicídio é o destino provável.

Perturba-me que todo este turbilhão pró e contra praxe surja na sequência de uma tragédia que extrapola em muito a banalidade deste debate. Defensores da praxe invocam o bom senso na execução da mesma como factor diferenciador; opositores invocam o bom senso para a sua supressão. Custa-me, no entanto, encontrar o bom senso em qualquer um dos lados, perdido que me encontro entre os ataques enfurecidos a uma actividade que ignoram e o fanatismo dos que defendem a praxe como se de uma religião se tratasse. Nada está acima do debate, mas é impossível tê-lo se não se despirem preconceitos, na mais pura semântica do termo. De parte a parte.

No meio de tudo isto, tem de se referir um aspecto incompreensivelmente negligenciado: a utilização do termo "praxes" no plural é o equivalente etimológico a um pontapé nos testículos. Dói fisicamente ler tal expressão. Não é ofensiva, pelo contrário, mas é intensamente e inexplicavelmente enfurecedora. No entanto, a sua repetida utilização na comunicação social traduz, inadvertidamente, algo que esta parece ignorar: a pluralidade e diversidade de práticas praxísticas, que legitima a continuidade da sua existência, alheia a energúmenos, que no início da tradição praxística jamais teriam lugar no ensino superior, que bebem a supremacia como uma droga e que teimam em desonrar, não só a capa, como toda uma geração. Geração essa que padece de males bem mais graves do que a praxe, que a única dor que me trouxe foi a de me fazer perceber, a pouco e pouco, que os acordes de guitarra que ressoam pelo Porto nas Serenatas se tornam a cada ano mais agradáveis, mas a cada ano mais distantes.

domingo, 26 de janeiro de 2014

A Verdade da Mentira


"Competing is intense among humans, and within a group, selfish individuals always win. But in contests between groups, groups of altruists always beat groups of selfish individuals." - E. O. Wilson

Eu odeio que isto esteja a acontecer. Com cada palavra que eu escrevo neste maldito teclado, um pedaço da minha alma se dissipa no vento. O meu ego desapontado olha para mim e, com os braços cruzados, vira-me as costas e vai-se embora. Infelizmente não consigo aguentar mais. Eu tentei, juro que tentei, ignorar o circo mediático que chegou ao país, e decidiu montar a tenda para discutir a morte de seis jovens no âmbito de uma actividade praxística. Apesar das amplas distracções proporcionadas pelos palhaços de serviço, temo que o fedor do esterco dos animais seja demasiado violento para continuar a ser ignorado.

Em primeiro lugar, uma declaração de desinteresse. A minha participação em praxe durou um dia. Eu considero essa prática académica ridícula, mas não singularmente ridícula. A minha recusa da mesma existe apenas no mesmo plano de recusa da bócia, sushi, caça a golfinhos e pepinos. Já experimentei (com a excepção da caça a golfinhos) e cheguei à conclusão definitiva de que não gostei. Não é para mim, mas há quem goste. Não há nada de errado com isso.

Eu não tenho a capacidade de suspender parcialmente a razão, o senso comum e a moralidade em nome da integração social. Mas se existe um grupo de adultos vacinados que tenham a vontade e a capacidade de fazê-lo, em nome do seu próprio prazer, sem prejudicarem terceiros, desde que todos o façam de livre vontade e desde que todos estejam devidamente habilitados para a utilização dos seus respectivos cérebros funcionais, não existe nada que eu ou alguém possa dizer para dissuadi-los de fazerem o que quiserem.

O chiqueiro discursivo que se tem observado neste caso é altamente revelador da ignomínia bipolar que tende a marcar o debate em Portugal. O debate é reduzido a uma mera proposição preta e branca de “ou isso, ou aquilo”. Num dos extremos, a praxe é uma actividade legítima, sustentada pelos mais nobres pilares de irmandade e bondade, com objectivo honroso de integração social, não estando sujeita a qualquer crítica. No outro, a praxe é uma aberração proto-fascista, um culto baseado na submissão sadomasoquista absoluta dos mais fracos, com o objectivo desprezível da fruição da autoridade, e que deve ser proibida. Como sempre, a verdade está algures entre os extremos, no território cinzento, longe do fundamentalismo passional, da cegueira emocional e do ódio moralista.

É óbvio que numa análise lógica objectiva, centrada nos valores socioculturais vigentes no mundo ocidental, a praxe não tem qualquer base para defender a sua existência. No prisma da generalização é uma prática académica que discrimina enquanto alega integrar, que pratica rituais tendencialmente imorais baseados em pressupostos ilegítimos de autoridade. É uma actividade largamente desprovida da tradição que alega ter, e na qual se baseia para justificar uma miríade de actos objectivamente desumanos. A praxe é logicamente inconsistente, mas não singularmente inconsistente, pois é essa a natureza dos conceitos abstractos com os quais organizamos a nossa existência.

As nossas vidas são definidas por essa inconsistência lógica. É a ambiguidade moral que nos permite existir ordeiramente sem a erupção de histeria em massa. Os nossos princípios éticos são as máximas às quais as nossas acções aspiram respeitar, não são leis absolutas impositoras de obediência total. Todos somos culpados de propagar a hipocrisia, a mentira e a falsidade. Não existe uma vida possível no mundo da verdade absoluta. Somos criaturas de espírito tribal dadas ao ritualismo. A nossa pulsação é bombeada pelo imperativo genético de que a sobrevivência depende da integração em grupos. No seu âmago, a praxe é apenas um subproduto cultural desses imperativos – um conjunto de ritos objectivamente irracionais que cultivam o altruísmo no seio do grupo e o egoísmo do grupo relativamente a outros. Isto é que todos nós fazemos nas nossas famílias, agremiações culturais, clubes de futebol e partidos políticos.

Quanto à natureza específica de actos habitualmente associados à praxe, apenas tenho a dizer que a livre vontade aqui é a chave. Durante toda a história da humanidade, pessoas extraíram prazer de trocas concertadas de submissão e poder entre indivíduos livres. Isso pode parecer errado objectivamente, mas a praxe não é diferente de outras actividades inseridas neste espectro marginal de fetichismos praticados por minorias, como o sadomasoquismo sexual. Estas actividades não possuem legitimidade objectiva isolada, mas quando contextualizadas como interacções livres sem malefícios para terceiros, a sua legitimidade vem à superfície.

Naquela noite, o erro dos jovens do Meco não foi a prática de rituais praxísticos. Foi a estupidez de estarem dentro do mar, durante uma noite de Inverno. Não existe mais nada. Não existe qualquer necessidade de um debate sobre a praxe. As pessoas gostam de coisas estranhas - é a explicação mais simples do fenómeno praxístico. Aquelas mortes são o subproduto da inconsciência juvenil e não uma consequência directa da existência de um culto estranho. Esta embrulhada tem, no entanto, os seus benefícios indirectos. Eu sou um amante de história medieval e, na ausência de tecnologia que possibilite viajar no tempo e na ausência de disponibilidade para viajar para a Suazilândia, isto é o mais próximo que eu alguma vez estarei de testemunhar uma caça às bruxas.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Anjos e Demónios


Agora que a poeira já começou a assentar sob a campa sagrada do Eusébio, julgo que é adequado falar sobre algo que me parece verdadeiramente perturbador em toda a cobertura mediática da tragédia. Não tenho nada a dizer sobre o Eusébio. O brilhante, mas preguiçoso, Diogo Hoffbauer já escreveu sobre isso e expressou tudo aquilo que eu penso sobre o nosso Messias de chuteiras.

Aquilo que me perturbou verdadeiramente foi um aspecto menor de toda esta comoção. A nossa imprensa insiste em disponibilizar tempo de antena ao Mário Soares. No rescaldo da morte, foram divulgadas as declarações do nosso Ilustre Senador sobre o Pantera Negra. Era um homem de “pouca cultura”, disse ele, que passava o dia a beber whisky e a frequentar restaurantes de carácter duvidoso.

Como agora acontece neste mundo cibernético, as reacções foram quase imediatas. As multidões chorosas devem ter ficado chocadas. O Facebook deve ter inflado com tanta indignação. Os servidores do Twitter devem ter entupido. As nossas personalidades da “opinião” não fizeram por menos, e decidiram massacrar o Grande Pajem da Esquerda por ter vozeado declarações tão ignorantes, estúpidas e desrespeitosas. Aproveitaram certamente este deslize para criticar a figura em todas as vertentes da sua vida - pessoal, cultural e política. Acusaram-no de snobismo, elitismo, presunção e vaidade.

A questão aqui é que a culpa não é do Mário Soares. Independentemente do espectro ideológico, qualquer pessoa que acompanhe a imprensa nacional já deve ter percebido que há cerca de dois anos que Doutor Mário não diz outra coisa senão barbaridades absurdas. A culpa é dos supremos idiotas que, dia sim, dia não, insistem em encostar microfones à boca caduca do Pai do Regime. Estes jornaleiros de pasquim procuram, com a avidez de piranhas em águas ensanguentadas, declarações que sejam chocantes e chamativas. Tudo para cumprir a missão repugnante de atrair espectadores, obter visualizações e somar “gostos”, estando completamente indiferentes ao dever de informar objectivamente.

Eu consigo suportar as opiniões datadas de Jerónimo de Sousa relativamente à sociedade, política e economia. Elas são inofensivas. São os sons flatulentos de um cadáver que passou do prazo de validade e insiste em ocupar um lugar no parque de estacionamento dos vivos. Eu não levo a mal. Não é pessoal. Sei que existem pessoas com opiniões que considero aberrantes, mas são pessoas que possuem mentes sãs e que possuem a legitimidade necessária para serem confrontados com a amplificação da caneta jornalística.

Eu não tenho qualquer pretensão de sapiência médica, mas parece-me óbvio, ou pelo menos provável, que o Doutor Soares esteja a ficar senil. Não no sentido patológico e cruel da demência, mas no sentido de que o antigo Presidente está a ser afectado pelo declínio inevitável e natural das suas faculdades mentais. A sua mente já não possui a destreza de outros tempos. A sua bússola emocional desregulada impede-o de absorver informação contextual e medir o peso das suas palavras.

Eu não vejo nas afirmações do Mário Soares sobre o Eusébio nenhuma intenção maldosa ou qualquer depravação moral. Eu desprezo os tablóides imundos povoados por seres humanos abjectos que, depois de recolherem aquelas afirmações, decidem difundi-las com uma intenção clara de manipulação. O objectivo deles é estimular uma glândula traquina que todos nós temos. A glândula que regula aquele instinto perverso que nos leva a tapar os olhos, mas a não resistir em ver o acidente através das brechas entre os dedos. Este jornalismo mucoso estimula o alívio perante a tragédia alheia, vê no chocante uma versão mais nítida da verdade e engana-nos com a ilusão de que todos somos anjos a observar, incólumes, a devassidão dos demónios.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Eusébio

A minha geração nunca viu jogar Eusébio. Ele apresenta-se-nos como um figura de contornos mitológicos, como Viriato. As únicas provas das suas façanhas estão em vídeos em que a única coisa com menos qualidade do que a imagem é o futebol praticado. A geração Y, habituada à alta-definição, aos relvados perfeitos, ao delicado trato da bola, à minuciosa estratégia e à intensidade do futebol actual, vê naquelas películas importantes registos históricos, mas dificilmente os apreciará pelos predicados futebolísticos das equipas.

Tendo eu propensão para procurar conhecer a história que antecedeu o meu nascimento, e sendo ávido consumidor do desporto-rei, perdi já várias horas da minha vida a apreciar os dotes dos heróis futebolísticos de outrora, cujos nomes estão canonizados, e que tantas vezes nos são repetidos que me sinto incomodado por desconhecer por completo as suas capacidades. Quero saber como jogavam craques como Di Stefano, Puskas, Pelé ou Charlton, como quem quer ler Shakespear ou ver filmes do Hitchcock. Deparo-me, então, com a mesma dificuldade: antes do renascer dos anos 70, o futebol praticado, mesmo ao mais alto nível, era manifestamente primário. Uma quantidade de passes e remates disparatados ao nível da Liga Vitalis e, acima de tudo, uma carência de zelo táctico de bradar aos céus: linhas defensivas pouco numerosas, descoordenadas, sarrafeiras e permeáveis a falhas de marcação que envergonhariam alunos em torneios inter-turmas.

Daí que as declarações recentes de Eusébio tenham caído mal a toda a gente, pela patética falta daquela humildade que agora tantos lhe atribuem, mas acima de tudo aos amantes de futebol da minha geração. Quando ficámos estupefactos quando Eusébio se disse triste por o compararem a Ronaldo, não o ficamos tanto pela soberba do pantera, nem mesmo pela sua confusão entre o Liechtenstein e o doutor fictício que criou um monstro. Ficamos porque sabemos que o Frankenstein de 2012 é bem melhor, táctica e tecnicamente, do que a Coreia do Norte de 1966. Sabemos que Ronaldo, num século XXI carregado de craques, em que o futebol atingiu uma importância e qualidade apoteóticas, disputa taco-a-taco um lugar como melhor jogador da era moderna com um sério candidato a melhor de sempre. E qualquer comparação de quem quer que seja a Ronaldo nunca pode ser depreciativa.

Posto isto, quero deixar claro um aspecto: o futebol praticado nos anos 60 tinha contornos amadores, e isso permitia que os melhores se destacassem mais. Mas Eusébio não enganava, era muito melhor que os outros, jogava melhor e pensava melhor. E partilha com Ronaldo uma quantidade surpreendente de características físicas e futebolísticas (velocidade, potência, instinto) mas também de carácter: ambição, inconformismo, amor pelo jogo e muita auto-confiança. Eusébio, tal como Ronaldo, sabia o quão bom era. Quando chegou a Lisboa, com 19 anos, à equipa campeã europeia, declarou que tinha a certeza que iria entrar na equipa. Uma segurança narcisística, essencial para certos jogadores, como é para Ronaldo.

Deixo também claro que também eu sinto um orgulho irracional por partilhar com o pantera o país que também irracionalmente amamos. Tem destas coisas a vaidade da homogeneidade lusitana: todos festejamos o mesmo, todos sofremos pelo mesmo. Com uma figura lendária como Eusébio temos todos uma inexplicável ligação emocional, pela sua grandeza de quinas ao peito. Ver o jogo com a Coreia do Norte arrepia, como arrepia o golo de Rui Costa aos ingleses na Luz e os três de Ronaldo na Suécia, com uma diferença: não o presenciei em directo, estava até longe de ser concebido. A universalidade dessa emoção nacional, que o futebol ajuda como mais nenhuma arte a carregar, ajudaram a consagrar Eusébio como um deus entre mortais.

Tal como as de um adolescente Ronaldo na final do Euro 2004, as lágrimas de Eusébio em 1966 foram nossas também. Merece que as derramemos agora por ele.