quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Em defesa da República Centro-Africana


“The idea that large historical events are determined by luck is profoundly shocking, although it is demonstrably true." – Daniel Kahneman

«Stringer Bell: "What are the options when you've got an inferior product in an aggressive marketplace?"
Stringer Bell’s Community College Business Professor: "You know, the new CEO of World Com was faced with this very problem. The company was linked to one of the biggest fraud cases in history. So he proposed . . ."
Stringer Bell: "To change the name."»
- The Wire

O trabalho do psicólogo israelo-americano, Daniel Kahneman, tem implicações capazes de abalar a estrutura do entendimento humano. O cientista demonstrou como o raciocínio é um processo altamente tendencioso marcado por vieses que nos levam a aceitar como verdadeiro e real aquilo que é falso e inexistente. Se por um lado é a nossa ignorância desses vieses que nos permite funcionar de forma eficiente, por outro muitas das nossas escolhas e impressões são determinadas por factores sobre os quais estamos complemente alheios.

As descobertas fenomenológicas relativas à irracionalidade da bolsa de valores são particularmente preocupantes. De acordo com o autor, em muitos casos existe uma maior eficiência num chimpanzé a atirar dardos num alvo do que num investidor a escolher as acções. A maioria dos investidores não tem sequer a capacidade de obter rendimentos superiores à taxa de valorização de uma determinada bolsa de valores. É possível prever fluxos de investimento tendo em conta a prevalência mediática das empresas. As pessoas que dizem ter previsto crises financeiras não foram mais do que apostadores sortudos num evento determinado por um número de factores muito superior à sua capacidade de processamento. Factores tão simples como o nome de uma empresa, ou a sua sigla, podem determinar desempenhos positivos na bolsa de valores.

É este último ponto que eu pretendo utilizar na minha defesa resignada da República Centro-Africana. As suas tragédias não se distinguiram num mercado continental particularmente saturado pela barbárie. A minha tese é que uma das razões principais para esse destino infeliz é que o seu nome monocórdico impossibilitou a formação de uma marca internacional. Parece redutor, mas convém dizer – sem ofensa, mas este é o pior nome de toda a história. O nome de um país deve ter um significado, aludir a uma história, fonetizar um sentimento ou transmitir uma impressão. Não pode representar uma mera caracterização geopolítica, especialmente quando o país possui aquele que é o pior aparato de relações públicas internacionais, impossibilitando-o de ordenhar a colossal glândula mamária da solidariedade ocidental.

Durante décadas, ouvimos falar de todos os países africanos. Todos os países do continente-berço têm um problema central, um atributo marcante, um motivo de fama, enfim, alguma coisa para posicioná-lo no imaginário ocidental e justificar as remessas de ajuda humanitária. Eles têm nomes exóticos como Malawi, Costa do Marfim, Congo e Zimbabwe. Alguns são os recipientes da atenção angelical de Angelina Jolie e da Madonna. Outros são chorados em canções medíocres patrocinadas pelo Bono. A região do Darfur, no Sudão, conseguiu a façanha de um dos seus mosquitos ter picado o George Clooney, infectando-o com a estirpe local de malária.

A Suazilândia tem a sida. A Somália tem os piratas. A Sierra Leoa tem os diamantes de sangue. Angola tem a Isabel dos Santos. A África do Sul compensa a sua limitação nominal com os seus feitos nacionais: o histórico fim do apartheid, um sistema democrático funcional, uma cultura poderosa, a liderança política regional e uma economia pujante. Na maioria a fome, sede, doença e guerra matam milhões numa forma chamativa o suficiente para projectar os clamores de aflição para um curto segmento nos telejornais do mundo ocidental. A República Centro-Africana, por sua vez, é uma representação paradigmática da marcha sombria de tragédias sem fim do Berço da Humanidade. Este é um país onde tudo o que pode acontecer de errado, acontece, e tudo o que pode ocorrer de mal, ocorre, muitas vezes numa sequência simultânea de tragédias simbióticas.

Durante o século XIX o país foi um mercado de tráfico de escravos. O país foi colonizado pelos franceses, cuja administração incluiu os abusos tradicionais de subjugação civil e violência generalizada, e durou até 1960. A independência nacional veio com a sucessão habitual de regimes autoritários, ditadores sanguinários, juntas militares e golpes de estado. A guerra tem sido especialmente prolífica neste pedaço de mundo – guerras civis, conflitos étnicos, milícias religiosas, insurgência rebelde e violência sectária. Neste momento o país parece estar a aproximar-se perigosamente do genocídio. Apesar de possuir todos esses atributos agregadores de solidariedade ocidental, o país é apenas o 83º maior recipiente absoluto de ajuda humanitária e o 69º maior recipiente em ajuda internacional per capita.

Os eventos históricos e a situação actual da República Centro-Africana são o resultado de uma confluência complexa de factores. Não pretendo fingir que entendo a tragédia da nação, submeter qualquer análise relevante ou oferecer qualquer solução para os seus problemas. No entanto, relativamente à sua instauração na mente da civilização industrializada, julgo que posso ajudar. O que a República Centro-Africana precisa é de uma campanha de marketing, algo que deve ser iniciado por uma mudança urgente de nome, e continuado de forma sistemática com vídeos virais de celebridades americanas. Aquilo que mais instiga o envio de dinheiro é o cultivo cuidadoso da culpa. Esse incitamento deve ser realizado de forma chamativa, pois, apesar de o mundo ocidental adorar pregar sobre as virtudes altruístas da sua alma caridosa,a verdade é que, se existe algo que nós não perdoamos, é o tédio.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Contra a paternidade


“É muito provável que aproveite estes últimos anos da minha vida, porque não os quero consumir aqui. Eu não quero, eu não aceito esta gente, não aceito o que estão a fazer ao meu país. Não votei neles, não estou para ser governado por este bando de incompetentes” – Fernando Tordo

E pronto. Seguindo o exemplo das intervenções indignadas de José Luís Peixoto e vAlTEr hUgO mÃe, eis que mais um dos nossos estratosféricos vultos de letras decide presentear-nos com um testemunho pesaroso da calamidade nacional. O recipiente do Prémio José Saramago 2009, João Tordo, divulgou uma “carta ao pai” onde expeliu a tristeza profunda que diz sentir devido à emigração do pai, o cantor Fernando Tordo, que partiu para o Brasil. Eu odeio ter que criticar um filho confrontado com a partida do pai, mas apenas o faço porque João Tordo publicou a sua “carta” num exercício público absorto onde decidiu misturar uma circunstância familiar com a situação político-económica de Portugal e ligar causalmente o destino da sua família com a acção directa do Estado português. Não satisfeito em realizar essa conexão linear redutora, o autor tem a imbecilidade de caracterizar o panorama actual de uma forma farisaica e intitulada.


O pressuposto teórico destes depoimentos é sempre o mesmo: o governo actual, no âmbito de uma intervenção política extremista desprovida de qualquer apoio popular, decidiu, meramente por capricho ideológico e por sadismo psicopático, empobrecer a população portuguesa. Está lá tudo. A vitimização pessoal paranoica. A narrativa histórica enviesada. O exercício de tautologia moral. A apresentação de factos isolados desprovidos de contexto. A simplificação de circunstâncias extraordinariamente complexas. A massagem do ego. A indignação inócua. A mendigagem calculista. A chantagem emocional.

O autor não se presta à racionalização. Não é como se a escolha arriscada de uma carreira intrinsecamente instável no mundo da música num país pequeno tivesse sido realizada livremente por Fernando Tordo. Não devemos considerar as limitações do sistema de pensões de um país altamente endividado envolvido num programa de ajuda financeira. Não existem quaisquer implicações da concessão de reformas aos sessenta e cinco anos num país onde a esperança média de vida ronda os setenta e nove. A única coisa que importa são os direitos inalienáveis de Fernando Tordo e os “valores de Abril”.

Longe de mim querer defender “os nossos governantes”, a quem o João Tordo atribuiu quatro crimes tão infantis que parecem ser o produto final de uma sessão de brainstorming num infantário, mas essas asserções burlescas a isso me obrigam. Este governo não acabou com a cultura - reduziu significativamente a despesa pública dirigida a essa área num momento em que cortam-se pensões e salários. O governo não acabou com a felicidade. Os portugueses são alegremente infelizes desde 1139. O governo não acabou com a esperança. A realidade é a verdadeira responsável. Quem cometeu um crime foi quem primeiramente criou a falsa esperança - as nossas elites socialistas, onde se podem incluir o nosso ilustre emigrante.

Essa falsa esperança foi infinitamente mais nociva do que o efeito entorpecente de “reality shows da televisão” e das “telenovelas” que o autor tanto teme. As lágrimas comunistas de Fernando Tordo são apenas o silvo daquele que vê o apagar das brasas da sua sardinha. E, se for para falar em destruição cultural, nem sequer é preciso ir muito longe. Basta que João Tordo e os seus compinchas da literatura portuguesa contemporânea continuem a produzir as suas obras, e teremos todos motivos suficientes para chorar a morte da nação.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Série "A Esquerda Portuguesa" - 3ª Parte - A Esquerda Caviar


“Acho que é possível um entendimento bastante grande com o Bloco de Esquerda” – Mário Soares

"Controlar o crédito é a medida essencial para ter uma política virada para o investimento."
– Francisco Louçã

“E quando não se pode pagar, a única solução é não pagar. Olha a Argentina. A Argentina disse «nós não pagamos». Passou-se alguma coisa? Não, não se passou nada.” – Mário Soares

Antes de começar o capítulo final deste modesto compêndio sobre a Esquerda portuguesa, tenho a obrigação de confessar os meus pecados. É necessário sentir a brisa purificadora da admissão na minha alma para poder iniciar esta inquisição retórica. Num país onde se fala tanto e não se diz nada, onde se diz tanto e não se faz nada, e onde se faz tanto e não se acerta nada, o dever mais patriótico é indubitavelmente ficar calado. Este é o meu primeiro pecado. O segundo prego da minha crucificação foi assente pelo martelo da tendenciosidade. A minha cultura familiar instituiu uma predisposição para o desprezo semiautomático relativamente às ideologias de esquerda. Por essa razão, durante um breve e inocente período, numa fase de rebeldia adolescente, aceitei os preceitos inaceitáveis da revolução marxista. Foi ao testemunhar a substancialização prática destes dogmas nas minhas primeiras incursões no mercado laboral que tomei a decisão imprescritível de virar a canoa e remar contra a corrente. A violência desta viragem acabou por verter para a minha argumentação e, por isso, eu, pecador, me confesso. No entanto, recuso-me a admitir a minha colocação na lateral-direita do campo da imoralidade. Não escrevi estes textos por malícia ideológica ou por gozo sociopático, apesar de admitir ter recorrido a ataques baixos perniciosos que me deram muito prazer. Esta é a terceira transgressão. Adicionalmente, quero que vossas excelências saibam que disponho de um coração, e que este já foi partido por uma orgulhosa militante do Bloco de Esquerda. Este facto potenciou marginalmente o enviesamento. Ser humano – é esse o meu quarto e último pecado.

O objecto deste capítulo – a Esquerda Caviar – faz-me sentir como um hominídeo desprovido de polegares oponíveis. Não consigo encontrar a ponta do fio do emaranhado labiríntico de correntes ideológicas. O sucesso da vespa-do-mar, uma espécie de medusa com um nível preocupante de dominância nos oceanos, deve-se, em parte, à sua prodigiosa capacidade reprodutiva. Hermafroditismo, clonagem, fecundação externa, autofecundação, cópula, fissão, fusão, canibalismo – todos estes métodos são utilizados pela triunfante e assustadora criatura. De uma forma semelhante, a Esquerda Caviar parece dever a sua génese, ascensão e estabilização à sua capacidade inesgotável de se multiplicar e em ver no sectarismo a sua base ontológica. Os subprodutos deste milagre gerador são uma miríade de movimentos, correntes, associações, partidos e agremiações essencialmente idênticas, que fazem circular artigos, manifestos, cartas abertas e missivas essencialmente idênticas, mas que acreditam, na sua medula, serem entes políticos drasticamente diferentes. Esta fraternidade de gémeos múltiplos recusa-se a reconhecer qualquer partilha de material genético e isso contribui para explicar o brotar desenfreado de cogumelos de esquerda nas raízes do regime. Logo, para que seja possível simplificar o objecto de investigação, limitar-me-ei a analisar uma amostra significativa, que será a Esquerda Caviar na sua variação bloquista.

O Bloco de Esquerda é resultado de uma orgia entre o Partido Socialista Revolucionário, a União Democrática Popular, a Política XXI e a Frente de Esquerda Revolucionária. Tanto quanto é possível derivar ilações superficiais da nomenclatura institucional, podemos concluir que esta foi uma união que fazia sentido na medida em que os seus nomes comunicavam claramente o seu objectivo - instituir, através de valores revolucionários, um regime socialista, democrático, popular e moderno. A ideia parecia simples, mas a cultura, por vezes, é mesmo incapaz de se sobrepor ao determinismo biológico. O sucesso inicial surgiu no mesmo ano da fundação do partido, em 1999, com a eleição de dois deputados para a Assembleia da República. Esse sucesso acabaria por culminar em 2009, quando o partido elegeu dezasseis deputados para a Assembleia da República e três deputados para o Parlamento Europeu.

Desde então, a expressão do gene dominante sectarista tem sido avassaladora e o passado glorioso do partido parece estabelecer-se de forma permanente como um curioso capítulo menor na história moderna portuguesa. Devido a divergências irreconciliáveis, a Frente Esquerda Revolucionária abandonou o Bloco de Esquerda, dando origem ao Movimento Alternativa Socialista. A União Democrática Popular recusou a sua extinção como associação política e impossibilitou a adopção de uma plataforma integrada de socialismo homogéneo. Um dos seus militantes mais conhecidos, Daniel Oliveira, anunciou o seu abandono do partido, acusando a direcção de ceder ao sectarismo interno e externo. Um dos seus rostos mais visíveis e uma das deputadas mais dotadas em termos de projecção vocal, Ana Drago, abandonou a comissão política do partido, devido a divergências relacionadas com uma candidatura integrada da Esquerda Caviar para as eleições europeias. Depois da saída do líder histórico, Francisco Louçã, o partido adoptou um modelo de “liderança bicéfala” e, com argumentos de “inovação” e “modernidade” e “igualdade”, provaram que são incapazes de concordar em algo tão simples como a estrutura hierárquica e mostrando aos cientistas políticos aplicações nunca antes conhecidas do termo “sectarismo”.

O sucesso do Bloco de Esquerda surgiu através da sua promoção de “causas fracturantes”. A despenalização do aborto, a despenalização do consumo de drogas, a legalização de drogas leves, o casamento homossexual, a adopção homossexual e, se Deus quiser, haverão de chegar à eutanásia. O resto pode ser resumido como um populismo oportunista que se expressa no apoio inquestionável a todos os sectores da sociedade que não contenham milionários. Os salários e as pensões devem ser aumentados, as propinas devem ser abolidas, as taxas moderadoras são inconstitucionais e o sector financeiro deve ser tratado como um cão raivoso à solta. Através da pintura deste tipo de plataforma temática numa tinta de estilo e irreverência, apelando às glândulas hormonais da rebeldia juvenil, o partido atraiu rapidamente uma massa revolucionários falhados, trotskistas nostálgicos, vegetarianos fundamentalistas, sociólogos marxistas, feministas militantes, amantes de árvores e apreciadores dos efeitos entorpecentes da canábis - tudo gente chiquérrima. Acima de tudo, o partido beneficiou de dois factores centrais: a novidade e o chocante numa cultura antiga e conservadora. No entanto, esta era a bela fachada da casa de horrores. No fundo, as motivações políticas do Bloco de Esquerda são tão questionáveis como a loucura ortodoxa do Partido Comunista Português. Ambos os partidos adoram os mesmos profetas do socialismo e vêem nos mandamentos marxistas a receita para a prosperidade eterna. Eles podem habitar casas diferentes, mas são vizinhos separados por um muro transparente. As suas casas são assombradas pelos mesmos fantasmas que vieram dos mesmos horrores da grande experiência social. A diferença fulcral entre estas duas estirpes do mesmo vírus é que, enquanto os comunistas aceitam a sua identidade e fazem questão de pavoneá-la com orgulho, os bloquistas, num exercício de ironia suprema, mantêm-se num armário ideológico, envergonhados de quem são, loucos e nus, a jurarem, de pés juntos e de punho erguido, que estão vestidos.

Este exercício foi um luxo intelectual e, se é que existe tal coisa, um dever moral. Quando questionado sobre a moralidade da existência homossexual, o Papa Francisco, afirmou que ele não era ninguém para julgá-los e que o dever cristão consistia na integração em detrimento da marginalização. Ao contrário do actual Bispo de Roma, eu aceito e pratico o julgamento. Eu considero-o uma ferramenta indispensável para a navegação nas águas perigosas da fossa séptica que é a política portuguesa. Sem o julgamento, o Bloco de Esquerda seria uma organização representativa de um credo válido num sistema político multipartidário que beneficia do confronto entre opiniões divergentes. A filosofia ensina-nos que a humanidade necessita do conflito dialéctico. A discussão é enriquecida por pontos de vista contraditórios. No entanto, as implicações centrais da ideologia do Bloco de Esquerda e da Esquerda Caviar são fundamentalmente erradas. Não admito o princípio absoluto de aceitação de opiniões meramente devido à sua divergência. Não existe um reconhecimento mínimo de validade na opinião divergente do socialismo. Essa ideologia nega a realidade dos instintos humanos mais básicos e insiste no controlo de algo incontrolável. Não tenhamos pena deles. Eles tiveram o seu tempo. Eles tiveram glórias e continentes inteiros. Em seu nome, actos horríveis foram cometidos. Mas não pensemos duas vezes. Neste país o tempo do socialismo deve acabar. No entanto, se houve algo que ele nos ensinaram, se houve algo de digno nos seus evangelhos normativos é que, a roda da história, por vezes, precisa de um pontapé vigoroso no rabo. Todos devemos tentar fazer a nossa parte e eu estou a tentar fazer a minha com esta contribuição insignificante. Devemos, sem misericórdia, sem qualquer permanência num reduto afectivo, usar a almofada argumentativa e, com rectidão impessoal, acabar com o sofrimento deste irritante paciente terminal.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Um Facto Particularmente Triste


“Being powerful is like being a lady. If you have to tell people you are, you aren't.” – Margaret Thatcher

Eu não tenho uma casa. Não me refiro a um edifício capaz de me abrigar da chuva, mas a uma cidade aonde eu pertença inteiramente. Eu nasci no Rio de Janeiro, onde vivi até aos onze anos, quando minha família mudou-se para Braga, onde vivi até aos dezoito. Por causa da faculdade, mudei-me para o Porto, onde vivi durante cinco anos. Há quatro meses que vivo em Lisboa, onde cheguei à conclusão que os pastéis de Belém nem sequer são os melhores pastéis que existem em Belém.

Isto não é um facto particularmente triste. Eu não medito sobre este assunto nas noites longas de chuva. É uma pedra no sapato. Como a segunda cerveja, é uma fonte ligeira de desorientação. Eu estaria a mentir se não dissesse que é incómodo ter levado uma existência seminómada que, como um circo itinerante, impossibilitou o assentar de raízes permanentes. O Rio de Janeiro é a minha cidade natal, mas a minha identidade é portuguesa. Braga é a cidade onde vivi os meus anos formativos, mas é a cidade dos meus pais. O único lugar onde consegui criar laços de familiaridade foi no Porto, a cidade adoptiva que, nos últimos cinco anos, foi para mim uma querida ama-de-leite.

Mas este texto não é sobre isso. É sobre um facto particularmente triste. É sobre a contínua obsessão nacional com galardões duvidosos. O nosso miserável costume de tentar capturar recordes mundiais com feitos como “a maior aula de judo do mundo”, “a maior aletria”, “a mesa mais comprida”, “o maior tacho de caracóis” ou “o maior pão com chouriço”. Se o nosso hábito de exaltar todos os feitos realizados por portugueses e por indivíduos com ligações remotas a Portugal pode ser considerado adorável, esta vocação para a adoração de troféus de plástico é incompreensível.

É neste sentido que a eleição da cidade do Porto, pela segunda vez, como “o melhor destino europeu do ano”, apoquenta-me. Não é uma honra verdadeira. Não é como se, num movimento espontâneo de reconhecimento alheio, o Porto tivesse sido condecorado pelo seu encanto como destino turístico. De forma a possibilitar a repetição o triunfo, ocorreu um movimento de “mobilização” para o incentivo ao voto online. Estiveram envolvidos neste esforço instituições como a Câmara Municipal do Porto, o Aeroporto Sá Carneiro e o Futebol Clube do Porto.

Aquilo que é triste é que nós somos talvez o único povo assolado pela pequenez de espírito necessária para encetar numa acção deste género. Certamente que não se ouviu o rufar de mobilização popular no rol das cidades “perdedoras” como Viena, Madrid, Berlim, Roma e Budapeste. Estas cidades são gigantes confiantes no seu valor que não viram a necessidade de corromper uma competição pela glória insípida de um prémio insignificante. A nossa justificação para esta campanha consistirá no seu potencial publicitário. Algo que, cujo efeitos, defendo eu, serão provavelmente residuais. A enorme valorização do Porto como destino turístico nos últimos anos deve-se a factores exógenos como o desenvolvimento de rotas de aviação de custo baixo. Os atributos centenários da cidade fazem o resto do trabalho.

Isto não é uma polémica e eu não estou a tentar criá-la. Eu não estou a tentar argumentar pela nulidade total deste tipo de iniciativa. É apenas um apontamento na margem do caderno nacional. Eu acho que somos um país maravilhoso e que não precisamos deste tipo de acção reveladora de complexos de inferioridade. Eu acho que o Porto é uma cidade deslumbrante que não precisa de se manter fixada em clichés antigos da “cidade do trabalho” e ideais vãos sobre a sua “singularidade”. Mesmo quando existem tantos que, como eu, considerem o Porto a nossa casa neste mundo.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Crónica de uma Morte Rogada


Numa existência em que o funcionamento dos sistemas biológicos são determinados pela vontade inexorável de sobreviver, o suicídio é um fenómeno desconcertante. A aceitação ou a recusa da validade da vida era, de acordo com Camus, o único problema filosófico sério. É um problema intimamente ligado ao conceito de significado e à forma como atribuímos sentido ao mundo em que vivemos. No dia 25 de Novembro de 1970, o celebrado escritor japonês, Yukio Mishima, fez essa escolha. Depois de se barricarem num quartel, o autor e quatro outros homens tomaram o comandante militar local como refém. A ocasião foi utilizada por Mishima para difundir um manifesto político em que preconizava a devolução de poder ao Imperador e a revisão da Constituição pacifista. A reacção obtida foi nula e, como resultado, o autor e três dos seus companheiros cometeram suicídio através de um ritual de esventramento denominado como “seppuku”.

Eu não tenho quaisquer ilusões sobre o mérito intelectual da nossa classe política. Sei que é fútil pensar que um sistema político partidocrático marcado pelas idiossincrasias culturais portuguesas levará à ascensão hierárquica justa de cidadãos competentes. Os anais dos governos democráticos proporcionam um vasto registro público com os nomes de ministros e secretários sem qualquer mérito ou competência. Os nossos dois últimos primeiros-ministros são dois baluartes desta tendência inquietante, mas receio que António José Seguro represente mesmo um patamar particularmente baixo desta mediocridade.

Ao aceitar os ditames desta infeliz propensão política, é difícil argumentar sobre a peculiaridade do líder socialista. Afinal de contas, os exemplos abundam – Miguel Relvas, Armando Vara, Paulo Campos e Rui Pedro Soares são alguns nomes que habitam na memória recente. Além disso, eu já gastei tempo, oxigénio e palavras a tentar definir a mediocridade flagrante de António José Seguro. O secretário-geral socialista brinda-nos quase todos os dias com gemas de rara imbecilidade, mas esta última ideia, pronunciada ontem, é, como António José Seguro, muito especial.

O líder da oposição propôs a criação de um “tribunal especial para investidores estrangeiros”. A acção desta inovadora instituição seria activada apenas em querelas que envolvessem “montantes significativos”, de forma a criar um “ambiente amigo” para a “criação de emprego”. No entanto, este é um homem audaz. Ele não se limita a plantar ideias abstractas no mundo e deixá-las florescer em toda a sua grandiosidade. Ele oferece também implicações práticas e concretas. O tribunal, diz-nos este anjo iluminado, operará num “prazo máximo” a ser estabelecido, de forma a garantir a resolução rápida de processos judiciais envolvendo investimento estrangeiro.


Se eu tivesse estado na mesma sala onde esta proposta foi anunciada, provavelmente neste momento estaria a escrever este texto num pedaço de papel numa cela de prisão. Esta é uma daquelas ocasiões raras em que eu sinto-me verdadeiramente ofendido e, dessa forma, considero moralmente justificável encetar neste modo discursivo de ataque pessoal. Este é um período grave da história do nosso país. Um governo amplamente incompetente utiliza uma política improvisada de austeridade sem qualquer desígnio profundo de reforma. E a única coisa que o líder do único partido da oposição com intenções de governança tem para oferecer neste momento oneroso são barbaridades inócuas e propostas infantis.

O modo mais simpático de dizê-lo é que o nosso sistema judicial é ineficaz. Em 2010, o tempo médio de resolução de um processo legal em Portugal rondava os três anos (1096 dias), um valor quatro vezes superior à média europeia. O tempo médio de execução legal de uma dívida é superior a quatro anos (1600 dias). São abundantes as histórias de julgamentos prolongados durante décadas resultando na prescrição de crimes. Qualquer empresário português tem um rol enorme de histórias sobre pesadelos burocráticos intermináveis. O país já foi condenado em diversas ocasiões nas instâncias europeias devido à morosidade do nosso sistema judicial. A classe dos juízes e o Ministério Público são duas das instituições mais desprezadas em Portugal. Para resolver problemas desta magnitude, António José Seguro propõe corromper o princípio de igualdade ao discriminar arbitrariamente processos legais recorrendo a critérios duvidosos de distinção. Não satisfeito com afirmar essa abominação lógica, Seguro ainda decide afirmar a existência de poderes mágicos do estabelecimento de prazos.

Eu já li diversos artigos em que as fraquezas de António José Seguro são substanciadas na sua alegada “falta de carisma” ou “falta de liderança”. Não tenho qualquer intenção em refutar essas afirmações. O líder socialista parece mesmo ser o homem mais entediante deste planeta. Mas os seus modos inofensivos fazem com que seja fácil menosprezar as suas maquinações diabólicas. As próximas eleições legislativas serão no próximo ano e a demência socialista ameaça desfazer a curto-prazo o progresso limitado conseguido por este governo. Um político como António José Seguro faz-me ter saudades das tradições e lugares de outrora. O tempo em que líderes japoneses arruinados cometiam suicídio por questões de honra. Esperemos que António José Seguro não tenha que arruinar o país antes de se arruinar ou que, pelo menos, se isso acontecer, alguém tenha o bom senso de lhe oferecer depois uma espada bem afiada.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Quinze Minutos de Miró


“Já estou a caminho. Devo chegar quinze minutos atrasado. Ainda vai dar tempo para tomarmos um café.” – Português anónimo

Há dias, quando ouvi estas frases num parque de estacionamento subterrâneo em Lisboa, fiquei em choque. Oitocentos e setenta e quatro anos como nação soberana, mil modos de fazer bacalhau, setecentas e vinte páginas d’Os Maias, mil cento e duas estrofes d’Os Lusíadas e oitenta mil milhões de euros do empréstimo da troika – nenhum destes números é capaz de encapsular como aquelas três frases singelas a maldição que é ser português.

Considerem bem o encadeamento maravilhoso daquelas palavras familiares. A mentira suave da primeira frase, a indiferença rotineira da segunda e a presunção deliciosa da última. Os suíços valorizam o tempo na sua tradição de relojoaria. Os alemães tratam a pontualidade como uma virtude sagrada. Para o português, aqueles quinze minutos de atraso não contam verdadeiramente. São um património imaterial da nação lusitana. Um direito de berço. Uma lei divina entregue pessoalmente por Deus.

Esta relação impassível que temos com o tempo é um sintoma da doença maior. É um daqueles factos que parecem um estereótipo cultural, mas não é. O nosso desrespeito pelas convenções verte para tudo o que fazemos. As fezes de cão nos passeios. As beatas de cigarros no chão. A condução psicopática. O estacionamento criativo. A evasão fiscal. A corrupção miúda. Os horários da administração pública. A relação simbiótica entre greves e feriados.

No entanto, este humoroso retrato generalista da nação não se compara à imagem absurda com que se fica do homo lusitanus depois de dar uma vista de olhos por qualquer órgão de comunicação social. Se aquilo que nos dizem é verdade, o português importa-se com os quadros do Miró. O português valoriza o “serviço público”. O português quer ter um debate sobre as “praxes”. O português é contra as touradas. O português é um activista político incansável. O português pensa que os Estaleiros Navais de Viana do Castelo são um empresa cheia de potencial. O português é contra a política “deste governo”. O português respeita o Mário Soares.

É inquestionável que um dos papéis da comunicação social é seleccionar os temas de relevo e determinar a intensidade da cobertura que cada um desses temas deve ter. É óbvio que um órgão de comunicação social nunca pode definir a sua cobertura apenas segundo as lógicas da vontade dos portugueses. Mas as recentes escolhas da agenda temática levam a concluir com um grau de certeza inabalável que as redacções estão a falhar catastroficamente na construção da harmonia entre aquilo que os portugueses valorizam e aquilo que os portugueses devem valorizar.

Neste caso mais recente, eu posso garantir que o português não quer saber dos quadros do Miró. O português nem sequer sabe quem é o Miró. Na eventualidade hilariante de os quadros ficarem num museu nacional, o português não irá visitá-los. Se por acaso visitá-los num fim-de-semana parado de Agosto, olhará para eles com choque e com a certeza de que o seu filho de sete anos seria capaz de produzir uma obra comparável. Além das alegrias do futebol e da emoção das novelas, aquilo que o português valoriza é a felicidade. A educação dos seus filhos. A saúde da sua família. Algo que tem diminuído consideravelmente nestes últimos anos. Algo que não é resolvido com uma imprensa que, no meio da terceira bancarrota da democracia, num escândalo financeiro que envolveu perdas superiores a três mil milhões de euros, decide enfatuar-se com um debate cultural sobre a venda de quadros de um pintor estrangeiro.

Enfim, é o resultado do balanço final. A entrega da factura da festa. Não há dúvidas de que este governo está a fazer um trabalho medíocre, mas a análise desse trabalho está a ser muito pior. As televisões produzem informação superficial. As rádios funcionam como televisões sem imagem. Os jornais transformaram-se em panfletos comunistas. Apesar disso, todos se proclamam como mananciais do “jornalismo de referência”. Esta comunicação social informa como se estivéssemos a viver no fim do mundo. As suas notícias reflectem-no. Quando aquilo que se precisava era de calma, inteligência e ponderação, aquilo que obtemos são gritos desesperados, o método universalmente reconhecido como a forma mais adequada de comunicar.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

O Futuro Japonês


Quando se observam as especulações conceptuais realizadas na década de cinquenta sobre o que seria o mundo actual, verificamos que essas não passaram de divagações afastadas da realidade. Não existem robôs sencientes. As nossas armas de fogo não disparam raios laser. Não nos movimentamos em carros voadores. Ainda não visitamos nenhum planeta. Não existem colónias na Lua. Não nos alimentamos à base de comprimidos. O motor de combustão ainda é ubíquo.

Actualmente a humanidade ainda tenta prever, com um grau inferior de erro, o futuro da segunda metade do século XXI. O autor americano, Ray Kurzweil, é consagrado pelo seu trabalho relacionado com essa tentativa de previsão. Num exercício pseudocientífico que se situa algures entre a astrologia e a neurocirurgia o autor já fez diversas previsões que se concretizaram de forma semelhante ou parcial. A explosão da Internet, aumento exponencial da capacidade de processamento de computadores, o surgimento de tecnologia de tradução textual de voz e o aparecimento de carros de condução autónoma.

No entanto, as suas previsões aplicadas ao futuro próximo são consideravelmente mais audazes. Entre outras coisas, o autor teoriza o surgimento de inteligência artificial, a proliferação de robôs no sector industrial primário e o desenvolvimento de robôs médicos na escala nano (milésimo de milionésimo), que serão inseridos no nosso corpo para realizarem manutenção. O autor prevê, para a década de 2030, o mapeamento total do cérebro humano e a possibilidade de ser realizado o upload da nossa mente num computador muito mais inteligente do que humanos. Para a década de 2040, o autor prevê que as pessoas passarão a maior parte do tempo imersas em realidade virtual e que existirão híbridos humanos-robô, potencialmente imortais.

É óbvio que parece uma previsão extraordinariamente rebuscada. Mas o futuro dá-nos diversos sinais. Em 1997, um computador chamado Deep Blue venceu um conjunto de seis partidas de xadrez contra o campeão mundial Garry Kasparov. Em terras nipónicas insistem em tentar criar robôs feminizados assustadores para fins de gratificação sexual. Na imprensa lêem-se suspiros da cura da sida e de vitórias na batalha contra o cancro. A assistente virtual do Iphone demonstra uma complexidade operativa espantosa.

O filme de Spike Jonze, Her, conta a história de um homem que se apaixona por um sistema operativo com inteligência artificial, carácter humano e personalidade feminina. Esta dramatização envolve uma sociedade futurista onde esses sistemas operativos são tratados como humanos por pessoas desapontadas pela imperfeição complicada da interacção humana real. Os dilemas existenciais surgem relacionados com a dificuldade em aferir se, num mundo onde a inteligência artificial é comparável com a inteligência humana, os sistemas operativos são uma forma real de existência.

Eu não gosto desta visão do futuro, mas recuso-me a ceder a tendências luditas. Não recuso os produtos do avanço do engenho humano. Não choro de nostalgia pela falsa romantização de certos períodos do século XX. Eu não sei como será o mundo em que viveremos no futuro distante, mas, se for de alguma forma semelhante ao futuro projectado, e se for tão horrendo quanto o plano do novo estádio do Real Madrid, espero que tenham o bom senso de inventar também uma máquina do tempo, para que eu possa fugir para o passado.