(Nota: o texto que se segue contém uma quantidade muito
pouco patriótica de estrangeirismos. Se tiver dúvidas, consulte um dicionário Português
– Português 2.0.)
Deparei-me há uns meses com uma reportagem, do Jornal de
Notícias, que se fazia acompanhar por uma foto na qual um jovem na casa dos vinte, com um azucrinante e presunçoso sorriso, empunhava
um cartaz no qual anunciava, orgulhoso: «Eu não tenho facebook». O artigo era
precisamente sobre jovens que não aderiram à epidemia e que resistem no seu vaidoso isolamento. Não ter facebook é uma opção válida e extremamente racional. Porém, o seu pedantismo e arrogância
deram-me de tal forma a volta ao estômago que dei por mim, eu que critico quase
diariamente o uso dado às redes sociais, a defender fervorosamente as vantagens
de um perfil activo nesse mundo paralelo.
O texto que se segue é uma avaliação crua, ainda que breve,
dos malefícios do facebook no que
concerne a desenvolvimento pessoal e às relações humanas. No entanto, esta minha
experiência com o hipster que vos
partilhei serve para ilustrar que, por muito que se assemelhe, não padeço da
prepotência do rapaz supracitado. Tenho facebook, respeito muito a liberdade individual e, acima de
tudo, nada tenho contra redes sociais per
si. Tenho, no geral, muito pouco contra coisas. Já contra pessoas, a
conversa é outra. Essas são amiúde mais difíceis de suportar pacificamente.
O facebook é uma
ferramenta de inegável utilidade. É uma plataforma muito interessante de
partilha de artigos, música, imagens, vídeos, e conteúdos multimédia em geral
que despertam a nossa atenção e que cada pessoa julga pertinente compartilhar com os seus contactos. Já todos descobrimos, através do facebook, conteúdos com os quais, de outra forma, não teríamos sido confrontados. Esta
funcionalidade de partilha permite mostrar aquilo de que gostamos, aquilo que nos
interessa e, eventualmente, conversar com alguém a quem aquilo também despertou
a atenção. Nada de mal com isto, é uma forma saudável e eficaz de criar um
banco de conteúdos público e diversificado.
Todas estas possibilidades vêm, contudo, com um preço. E é sobre esse preço que vos quero falar, sobre aquelas que creio serem as armas
com que as redes sociais nos apetrecham e que representam perigosas tentações
às quais poucos escapam.
A primeira dela é a sensação de alterar a nossa própria
personalidade. As mudanças de personalidade ocorrem com frequência, com o tempo
ou moldadas por circunstâncias. As grandes mudanças decorrem, por um lado, da
genética e dos acontecimentos externos, e, por outro, da consequente e
saudável confrontação connosco próprios.
Ora estas mudanças que as redes sociais difundem decorrem do
processo oposto: fugindo ao que não gostamos em nós, construímos a nossa imagem
como a de um ser próximo da perfeição. A acne dá lugar ao sépia, as
inseguranças dão lugar aos likes alheios,
e os fantasmas da intrínseca maldade humana são substituídos por likes próprios para cães atropelados. É
essa a fantasia do mundo facebook: é
habitado por pessoas lindas, cultas, preocupadas, gentis, sociáveis. Esses alter egos são em tudo semelhantes a
nós; mas melhores. E, sobretudo, mais populares.
Isto traz-me a outra tentação de que falarei: a sensação de
celebridade. O desejo de ser uma pessoa famosa não é novo, e os benefícios da
fama são explícitos e aliciantes. Esta fama facebookiana
não permite aceder a festas privadas ou ir para a cama com groupies. Permite, no entanto, a vivência da sensação de que as pessoas
querem saber da nossa vida. Estão curiosas por saber onde fomos, o que comemos,
o que dizemos, tal como as massas estão interessadas em acompanhar o quotidiano
das grandes celebridades. A lendária Betty White disse que, antigamente, ver
fotos de férias dos amigos era um tédio, e que agora é um passatempo.
Esta atração pela sensação de fama é, mais frequentemente, uma
tentação à qual as mulheres são mais vulneráveis. Esquecem-se, no entanto, de
um pormenor que é de tal forma relevante que é, na verdade, aquilo que faz o
mundo girar: os homens são uns porcos. Assim sendo, o facebook tornou-se uma plataforma conspurcada de engate, que vai do
mais subtil ao mais descarado, dependendo do desplante e do atrevimento do
indivíduo. Esta nova dança de acasalamento não me irrita como outras coisas
nesta rede social. Mas perturba-me sobremaneira, porque não raramente resulta, e isso é para mim um mistério; e as coisas que eu não consigo explicar perturbam-me por demais.
Os insondáveis caminhos para o acesso à cama de uma mulher são
e continuarão a ser labirínticos. Há, no entanto, um conjunto de factores que
explicam facilmente o escalar de uma atracção. A atracção entre dois seres não
é estática, é gradual, é faseada, durem essas fases longos meses ou escassas
horas. E para isso é preciso todos os sentidos funcionarem como um. Quando
todos os sentidos humanos se fundirem num, num apenas, que faz com que
queiramos aquela pessoa mais do que todas as outras, está construída a
atracção. Para isso contribuem todo o tipo de factores, como o cheiro da pele,
o tom de voz, o riso. No fundo, toda a percepção que a proximidade física proporciona.
Que todo este processo se desenrole no mundo online é para mim inescrutável e
altamente intrigante. Ela pôs like no
meu artigo, logo daqui a uns dias tenho de retribuí-lo numa foto dela, para ela
ver que estou interessado e atento, para que na festa da próxima semana, quando
ela estiver bêbeda o suficiente para me querer, e eu estiver bêbedo o
suficiente para falar com ela sem usar um teclado, tenho mais hipóteses de ter
sucesso. É este o jogo de sedução moderno. Chamem-me antiquado, mas parece-me
cinzento, confuso e entediante. Mais do que isso, é mecânico e artificial.
É, no entanto, uma inevitabilidade. As mulheres estão lá
todas, como um catálogo de carros, um menu detalhado, que contém todas as informações,
currículo, cilindrada, interesses artísticos, combustível, estados de espírito
e, mais importante, fotos de vários ângulos e outfits, o que permite avaliar a qualidade do veículo e, se tudo
falhar, servir como suporte visual a uma maratona masturbatória.
Por fim, quero referir uma perversidade oculta nisto tudo: o conceito de privacidade não foi deturpado. Está antes rapidamente a definhar-se. Ficamos chocados se alguém usa uma foto nossa, mas somos os primeiros a pô-las online. Se alguém nos aparecer no nosso local de trabalho, ou em qualquer outro sítio só para nos ver, não podemos culpar ninguém senão a nós próprios por essa informação ser de conhecimento geral. E quando eu falo da preocupação em certas informações não serem do conhecimento geral não falo em segredos. São informações que se podem dar casualmente numa conversa informal com um conhecido. Mas nós partilhamos tudo com os desconhecidos. Eles sabem dos nossos relacionamentos, da nossa família, dos nossos destinos turísticos, da nossa vida nocturna. Pessoas que só conhecemos de nome, ou nem isso, sabem coisas sobre a nossa vida que a nossa avó não sabe a não ser que pergunte. Isto tem de assustar qualquer mortal com o mínimo de auto-preservação.
Estamos num ponto sem retorno. Ninguém quer chegar a casa e
perder o contacto com as pessoas. Ninguém quer abdicar da persona que criou,
que é tão popular e apreciada. Ninguém quer voltar a ter de abordar uma
rapariga pessoalmente de forma a mostrar interesse. Olhar nos olhos é íntimo e invasivo,
e nunca as nossa tiradas hilariantes a que ela responde com tantos smiles de riso vão ter tanta piada
improvisadas na hora como têm no facebook,
com tempo para pensar e construir a frase da forma mais cool. Até que esta aparente fuga à solidão nos fará a todos mais solitários,
num mundo em que as identidades se vão desvanecer, e em que nós próprios vamos
deixar de saber quem somos: a pessoa sorridente, social e activa que aparece na
foto e que comenta com joviais emoticons;
ou a pessoa solitária que está de braço esticado a tirar uma foto sozinha e que
vai passar as próximas horas na cama a fazer scroll pelo feed e a
comer as bolachas de chocolate do Pingo Doce até enjoar delas para sempre.