terça-feira, 17 de março de 2015

Sobre a banalidade dos homens


“Galileu escrevia muito bem. Li-o em traduções medíocres. Disse, diante dos inquisidores, que isto não se movia: gozava, ao dar-lhes razão, inteligente como era: porque isto, de facto, não se move.” - Sebastião Alba

Há erros que deixam de existir depois da morte. Pais alcoólatras se transformam em santos, filhos ingratos em anjos, terroristas em mártires, homens banais em mitos. Esse esmalte purificador é uma das vantagens inegáveis do passado. Depois de tempo suficiente, até o mal deixa saudade. As memórias ganham contornos mágicos que nos garantem que o presente é sempre pior e que o futuro nunca será melhor.

Os museus estão entupidos com exemplos. Os retratos pintados de reis eternizam a imagem sagrada de líderes serenos e magnânimos. As esculturas de filósofos gregos criam ideais de sabedoria e tenacidade que nunca conseguiremos atingir. As fotografias a preto e branco de estrelas de rock falecidas lembram-nos que nunca teremos tanto estilo como aqueles que possuem a sorte de serem eternamente jovens. Raramente lembramo-nos da violência, da crueldade, da loucura ou da imoralidade desses vultos do passado.

Nem é necessário argumentar, bastam as imagens. Contraste-se a serenidade magnânima dos reis do passado com o escárnio jocoso com que olhamos para o bigode farfalhudo de D. Duarte Pio; a serenidade tenaz dos filósofos do Antigo com a ironia com que avaliamos a utilidade da filosofia no mundo moderno; a rebeldia estilosa que Jimi Hendrix levou para a cova com o declínio biológico que Bob Dylan tem a sorte de usufruir; a evocação respeitosa de Che Guevara com a comicidade involuntária de Fidel Castro e os seus fatos de treino.

Consideremos o nosso caso nacional. Enquanto Mário Soares definha à frente das câmeras, a memória de Sá Carneiro recebe um elogio fúnebre eterno. Sá Carneiro é o pai espiritual da social-democracia portuguesa e, se não tivesse morrido, o país seria diferente. Era um político inigualável, um estadista exímio, um homem à frente do seu tempo, um conciliador de vontades, capaz de unir gregos e troianos, portuenses e lisboetas, sal e açúcar. Era o único homem que poderia ter carregado este naco de terra nas suas próprias costas em direcção ao progresso que a nossa constituição comunista tanto exalta. Sá Carneiro é o melhor político que alguma vez existiu em Portugal. Com comendas de tal ordem, facilmente se conclui que o maior erro político de Mário Soares foi não ter morrido tragicamente num acidente de avião. Se queres fazer obra, morre.

No presente, a glorificação do banal assume outra forma. Pasmamo-nos com os excessos alucinados do culto norte-coreano de deificação política, mas, ignorantes da nossa retumbante estupidez, não conseguimos ver que fazemos a mesma coisa. Numa versão aguada, é certo, mas que funciona segundo a mesma lógica.

Rejeita-se a responsabilidade e deposita-se toda a esperança numa figura mítica, num milagre dos céus ou num acaso da sorte que obrigue o universo a reconhecer legitimidade dos nossos desejos. Com isso, descobre-se no desamparo a solução para todos os problemas. Quando aquilo que é necessário são realismo e homens mortais que reconhecem as suas limitações, aquilo que pedimos são promessas e semi-deuses. Não nos espantemos então com a constituição moral e a competência técnica da nossa classe política: quando clamamos por homens que pensam que são o Messias, os únicos que levantam o braço são os estúpidos, os ignorantes, os loucos, ou os ambiciosos o suficiente para afirmar que são o filho de Deus.

Os partidos no poder desempenham dois papéis alternadamente. No governo, esbarram contra a realidade; na oposição, prometem diamantes e galáxias. O eleitorado adapta-se: àqueles que apoiam, exigem reciprocidade, preferencialmente manifestada em recompensas materiais; àqueles a quem se opõem, exigem perfeição, sabendo e ignorando que esta não existe. Nos interlúdios, perdemo-nos na eclosão mediática de “escândalos” que a imprensa encontra, eventos com o valor de uma moeda de cinco cêntimos perdida no chão; tem valor, mas não é suficiente para me fazer parar. Ignoramos a doença, mas ficamos ultrajados com os sintomas. Confrontados com a complexidade inerente a qualquer problema, contentamo-nos com o fatalismo de costume, cedendo à generalização desinformada de que os políticos são todos os iguais.

É como ver babuínos a atirar fezes uns aos outros: até seria engraçado, se não fosse tão tristemente previsível. O apelo desaparece rapidamente, passando do fascinante para o engraçado, do engraçado para o patético, e do patético para a repulsivo. O resultado final é o mesmo. Ficamos todos um pouco mais sujos, um pouco mais cansados e muito menos respeitáveis, sabendo que nada mudou e que ninguém aprendeu nada, confundindo o alívio nos intestinos com um sentimento de realização. E continuamos aqui, com merda a pingar da testa, à espera que alguém, Sá Carneiro ou D. Sebastião ou António Costa, tanto faz, retorne, num dia qualquer, ou numa manhã de nevoeiro, cheio de jet-lag, para salvar esta nação cheia de pessoas à espera de serem salvas.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Fiscais

O nosso primeiro-ministro é um líder político cujo discurso e actuação sempre se pautaram pelo rigor financeiro e pelos apelos ao sentido cívico e de responsabilidade. Quando se descobrem registos de que o seu passado não é assim tão isento de falhas, é natural que palavras como hipocrisia e falsidade pululem pelas vozes da opinião pública.

Eu vou tentar que este texto não possa ser confundido com uma apologia ao comportamento de um primeiro-ministro que já em muitas ocasiões demonstrou pouca habilidade política, nomeadamente a gerir situações com esta. Também eu tenho muitas interrogações em relação a este caso, assim como certezas de que algumas coisas foram mal manejadas, e as tentativas de desculpabilização e de absolvição roçam o ridículo. O homem estava tão desesperado que foi pagar uma multa prescrita. A quem e como é que falta averiguar.

No entanto, o meu problema com este caso é bem mais político do que ético. A fuga ao fisco é uma tradição que não pode ser esquecida, e muito menos condenada por quem a ajudou a propagar. Não peço ao cidadão que ignore o facto de termos um primeiro-ministro com um passado fiscal incumpridor e, sobretudo, obscuro. Deve haver escrutínio, deve haver rigor. Rogo apenas a que haja coerência de ideias, quer no elogio, quer na crítica. E não o faço exclusivamente a quem, como podem julgar, tem na fuga aos impostos um hábito. É importante porque não só os incumpridores fiscais pecam por falta de coerência ao opinar sobre este caso.

Para haver coerência, naturalmente terá de haver uma referência, um padrão opinativo. Isso não existe no cidadão comum. O cidadão quer políticos honestos, mas condena quem mostra honestamente que andámos a viver em regabofe e que é preciso pôr um travão. O cidadão reclama serviços públicos de alcance global, mas ataca a tirania do Governo quando este cobra os impostos que permitem ao Estado cobrir essas despesas. Um dia alongar-me-ei sobre as inconsistências argumentativas do povo português. Para já, alerto para a sua existência, e para o quão precipitado é avaliar o comportamento ético de alguém pelo seu passado de descontos para a segurança social.

Outra coisa: Passos Coelho não é um baluarte da honestidade. Mas o que é preciso não olvidar é que, como o primeiro-ministro se esconde por trás dos erros do seu antecessor, não podemos esconder atrás dele as falhas os nossos enganos colectivos - sociais e políticos - que foram decorrendo ao longo das décadas de democracia.

A nível de exemplo e de integridade, este caso é um escândalo lamentável e evitável. Mas o diagnóstico que Passos sempre fez do sistema fiscal é correcto e certeiro. Não se deixem enganar pelas suas fugas ao fisco: há oncologistas que fumam.