quinta-feira, 30 de abril de 2015

Matar por atum

the droll noon
where squadrons of worms creep up like
stripteasers
to be raped by blackbirds

I go outside
and all up and down the street
the green armies shoot color
like an everlasting 4th of July,
and I too seem to swell inside,
a kind of unknown bursting, a
feeling, perhaps, that there isn’t any
enemy
anywhere

and I reach down into the box
and there is
nothing not even a
letter from the gas co. saying they will
shut it off
again.

not even a short note from my x-wife
bragging upon her present
happiness.

my hand searches the mailbox in a kind of
disbelief long after the mind has
given up.

there’s not even a dead fly
down in there.

I am a fool, I think, I should have known it
works like this.

I go inside as all the flowers leap to
please me.

anything? the woman
asks.

nothing, I answer, what’s for
breakfast?


Charles Bukowski


Conheço pessoas que não podem ouvir a palavra “sushi”. Poder, até podem. Eu é que não quero que a palavra chegue aos seus ouvidos. As duas delicadas sílabas nipónicas são proferidas, e o discurso racional desaparece. Seguem-se descrições de fatias gordurosas e reluzentes de peixe cru, enquanto os sonhadores tentam esconder a salivação (um bem-haja, Pavlov!), adoptam uma retórica extremista (“tenho de comer sushi pelo menos uma vez por semana”) e fazem juras incompreensíveis de amor eterno (“quero ser enterrada com peixe cru”).

Às vezes, nesses momentos, perco a calma. Consigo escondê-lo na maioria das ocasiões, mas já aconteceu ter de inventar uma desculpa e ir-me embora. Parece ridículo, eu sei, até mesmo absurdo, mas sou possuído por uma raiva incompreensível. Não estou a ser hiperbólico ou figurativo. É mesmo raiva, daquela que circula no sangue sob a forma de adrenalina, que provê de energia adolescentes zangados em concertos de metal e soldados desesperados em campos de guerra. Quero virar a mesa, gritar como um chimpanzé com rábia e gesticular como Hitler num comício político.

Sempre fui assim. É uma das sensações mais antigas que vagueiam pela minha memória: tentar conter a raiva. Na infância, a aflição era tanta que o canal lacrimal era inundado por uma monção asiática. Nessas situações, além da raiva, tinha de esconder também o choro. Os motivos que causam as crises são indirectos, mas compreensíveis. No exemplo introdutório, a minha ira não advém de alguma aversão primitiva a sushi. Eu associo a obsessão cosmopolita pelo sushi a outra coisa, algo que activa o meu cérebro reptílico e que não desejo partilhar com o vácuo infinito do precipício cibernético. Mas, sendo honesto e ambíguo, a culpa era minha. Ao não lidar com os problemas reais, a raiva acumulava-se e o resultado final não era digno: um homem adulto perdia a calma por causa da mera alusão a um tipo de comida.

Julgo que não sou velho o suficiente para coçar a minha barba branca, dar mostras de sabedoria e catalogar aquilo que aprendi nestes vinte e cinco anos entre o céu e a terra. Mas se há algo que aprendi, algo cujo valor de aprendizagem é distintamente superior ao das outras milhares de pequenas lições, é a futilidade de perder a calma. Essa asserção parece óbvia, mas é muito fácil entrar num ciclo de dependência de emoções extremas. A raiva reforça a noção errónea de que estamos certos e que o mundo é um inimigo. E o ressentimento que se segue é delicodoce, como a melancolia.

Antes escolhia contê-la, cedia ao instinto. Raiva pessoal não é nada mais do que vergonha agressiva, e vergonha é, perdoem-me a redundância, vergonhosa (São Camões que me perdoe por esta prosa de folheto de auto-ajuda). Ela aparecia, derivada de coisas insignificantes e de coisas sérias, mas era controlada por anestesias proporcionadas pelos milagres farmacológicos da alquimia humana. Quando, por saturação ou por mera eventualidade, a canção se tornou realidade e as drogas deixaram de funcionar, passei a lidar com ela em lampejos vergonhosos de gritaria e masoquismo, um comportamento que só parou quando os limites estarrecedores da quase-morte foram atingidos.

Agora ela sai, como a fumaça de uma locomotiva da era industrial, de forma visível e controlada, numa série de chaminés solitárias (também aprendi que a raiva é tímida). Corro à noite, limpo a casa regularmente (o valor terapêutico é limitado; não quero limpar as vossas casas, mas obrigado pela oferta), faço voluntariado (muito nobre, eu sei, estou a subir as escadas para o céu), aprendo peças complicadas na guitarra, nado, tomo banhos de imersão, medito (muito profundo, eu sei, mas a ciência é inegável), conduzo sem destino (como um cliché sob quatro rodas).

Não sei porque possuo tamanha susceptibilidade inflamatória, mas já aceitei que ela não desaparecerá. Por vezes é útil. Permite-me terminar aquilo que começo, já que, no meu caso, a raiva é prima de segundo grau da obsessão. Mas noutras situações é apenas uma descarga mesquinha de alguém irreparavelmente inconformado com problemas irresolúveis. Agora aceito que certos problemas não têm solução. Aprendi que muitos dos meus problemas nem sequer existiam; eu, como muitos outros antes de mim, entrava em jardins sem saber que eram labirintos, pensando que sabia onde ficava a saída e que os idiotas do passado se tinham perdido devido à sua natureza idiótica.

Isto não é uma confissão declamada do topo da montanha. Não reivindico nenhum estatuto de sabedoria. Não habito um templo. Não possuo discípulos. O meu estado actual é apenas uma linha de suturas que pode a qualquer momento se transformar num remendo permeável. Há dias em que não sei como é que mudei tanto. Há dias em que não sei como consigo manter a calma. Os estímulos da raiva continuam absurdos. Às vezes basta acordar. Às vezes basta o contacto com algumas das modas mais insuportáveis dos nossos tempos, como a obsessão culinária, com os programas de televisão, os buffets de sushi e as hamburguerias gourmet. Mas há dias em que sinto que até tenho alguma razão. Isto foi longe demais. Se ouço mais uma pessoa a falar sobre a importância de ter a frigideira bem quente, ou sobre a necessidade imperativa de possuir um ralador de queijo, algo horrível acontecerá a essa pessoa, e envolverá a minha mão direita, uma frigideira e um ralador de queijo.

domingo, 19 de abril de 2015

Sobre a banalidade dos homens - II


“This is the day upon which we are reminded of what we are on the other three hundred and sixty-four.” - Mark Twain, sobre o primeiro de Abril

Rodrigo de Borja, conhecido profissionalmente como Papa Alexandre VI, teve um pontificado de onze anos, entre 1492 e 1503. Subornou cardeais para garantir a sua eleição. Atribuiu cargos importantes a membros da sua família e a membros da família da sua amante, Vanozza Catonei, com quem teve quatro filhos. Organizou os três casamentos da sua filha Lucrécia de acordo com necessidades políticas. Vendeu indulgências como se fossem commodities em mercados internacionais. Os rumores que circulam à volta do seu mito incluem palavras como incesto, homicídio, envenenamento e orgia.

Quando Jorge Bergoglio se transformou no Papa Francisco, ele decidiu morar na casa de hóspedes do Vaticano, rejeitando o luxo do tradicional apartamento papal. Lavou os pés a doze detidos de prisões romanas. Abdicou dos tradicionais ornamentos dourados que embelezavam decadentemente a figura papal. Trocou o trono extravagante do Bispo de Roma por uma cadeira respeitável. Substituiu os tradicionais sapatos vermelhos de couro por um par de sapatos banais. O seu ascetismo foi aplaudido. Até alguns ateus de serviço se juntaram à salva. Outras pessoas, no entanto, criticaram a santíssima decisão, assim como a torrente ingénua de elogios que se seguiu.

Afirmaram que não era suficiente - o Papa não tinha montado uma tenda humilde na Praça de São Pedro. Os museus do Vaticano estão cheios de tesouros avaliados em milhares de milhões de euros enquanto nações inteiras passam fome. A instituição católica continua tingida por uma opacidade tenebrosa que oculta escândalos chocantes. É natural que existam discordâncias, mesmo nas coisas mais simples. Afinal, unanimidades absolutas só no Comité Central do PCP. Mas uma pergunta impõe-se: o que é que podemos concluir sobre a natureza humana quando mesmo actos deste género são criticados?

Nada de mais, para ser sincero. É perigoso extrair conclusões abrangentes de pedaços avulsos de informação. Mas aceitando esse perigo, poder-se-ia arriscar e concluir que um certo cinismo irónico venceu, instalando-se como o tom preponderante do nosso discurso cultural.

É um mundo onde as nossas almas se retraem com náuseas cada vez que se fala de honra e moral e certo e errado, como se essas questões fossem simples e o debate já estivesse resolvido. Assume-se que nascemos livres e puros, que a bondade é intrínseca no coração humano, e que a única coisa que resta é a busca da felicidade e a procura pelo prazer. Aqueles que ousam pregar do púlpito, mesmo do púlpito secular, são ostracizados pelo relativismo céptico de quem se julga o detentor inquestionável da sabedoria.

É certo que o Papa não realizou nenhum acto extraordinário na sua decisão de recusar a mansão papal. O mundo não mudou porque ele decidiu rejeitar a ostentação que tradicionalmente cobria o sucessor de São Pedro. Mas esta questão tem implicações mais graves e mais subtis.

Esqueça-se o Papa Francisco e considere-se o Jorge Bergoglio. É um homem. Come e dorme. Olha-se ao espelho. Arrota. Bate com o dedo mindinho nos móveis. Usa papel higiénico. Tem erecções. Ele provavelmente até acorda da mesma forma que nós. Abre os olhos, mas não quer sair da cama. Fecha os olhos, e cede àquele impulso misantropo de pequena duração que nos faz duvidar do valor da existência fora do conforto enrodilhado de cobertores quentes. Depois, num gesto corajoso, masoquista e banal, arranca as cobertas, pousa os pés no chão frio de madeira envernizada e luta para manter os olhos abertos.

Esta pequena batalha – acordar – é partilhada por todos. É superficialmente insignificante. Mas quantos de nós, se estivéssemos na posição do Papa, teríamos abdicado do que ele abdicou? Acordar pode ser uma batalha pequena, mas é uma batalha que seria ganha com maior facilidade no conforto do apartamento papal. Qualquer um de nós, uma grande maioria, provavelmente, teria muita dificuldade em recusar todos aqueles símbolos de poder. Mesmo sendo o representante máximo de uma religião que prega a humildade, aproveitaríamos a oportunidade suprema de sermos algo próximo de mestres do universo, alguém que vive num palácio, veste-se de seda, adorna-se com ouro e influencia o mundo com apenas meia dúzia de palavras. E sejamos honestos. Um homem que é voluntariamente abstinente precisa de todos os outros prazeres que a humanidade tem para oferecer. Ao retirar-se o sexo da equação, o mínimo que podem fazer pelo homem é cobri-lo com ouro e oferecer-lhe um palácio onde se serve lagosta todos os dias.

Os tempos são outros. O mundo de hoje nunca toleraria a devassidão que reis e papas desfrutaram no passado. Mas criticar o Papa Francisco desta forma não é um exercício de cepticismo saudável. Não há nenhuma grande hipocrisia escondida no papado. A hipocrisia é criticar este Papa por fazer coisas que poucos fariam. Não que ele seja assim tão exemplar, ou assim tão bom e puro, mas, nós, na esmagadora maioria, não somos nem exemplares, nem bons, nem puros. O problema aqui não é reconhecermos a superioridade moral do Papa. É não reconhecermos que, na maioria dos casos, o nosso pontificado estaria mais próximo de Alexandre VI do que de Francisco. E certamente que não teríamos lavado os pés de ninguém. Nem sequer os nossos.