quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Os 100 Craques Que Mais Me Marcaram (#79 - 60)

79 - Paul Pogba - O mais jovem atleta nesta lista terá de carregar o pesado ónus de ser também o mais caro jogador da história de qualquer desporto. A verdade é que algo convenceu o United a pagar um prémio do euromilhões por ele, e não foram os penteados picarescos ou os fatos extravagantes. Pogba é um tesouro que aparece uma vez a cada geração. É difícil não imaginar a inevitabilidade do seu sucesso na função de médio ofensivo na Premier League, onde poderá explorar livremente o seu ilusionismo, atleticismo e violento pontapé. Se Mourinho quiser, terá nele um jogador que decide campeonatos.

78 - Alexis Sanchéz - Se querem demonstrar a um jogador ofensivo a importância da mobilidade sem bola, o mais recomendável é mostrar-lhe vídeos das movimentações de Alexis no Barcelona. Era activo, astuto e incansável na procura do espaço. Mudou-se para o Londres, onde se pôde assumir mais responsabilidades de construção e desequilíbrio. Lesto, habilidoso, criativo e um grande finalizador, já leva duas Copas Américas consecutivas pelo seu Chile, selecção na qual é a estrela mais cintilante.

77 - Alessandro Del Piero - Este senhor era já considerado uma lenda da bola quando a Juventus desceu de divisão à custa do escândalo calcio caos. O capitão permaneceu na Vecchia Signora e deu o exemplo: 20 golos na Série B e, na época seguinte, no regresso à sua casa Série A, foi eleito o melhor jogador da liga aos 33 anos de idade. Acabou a carreira com 346 golos. Tinha a respeitabilidade de um grande capitão e a probidade de um grande homem. Em suma: um verdadeiro catedrático do jogo.

76 - Radamel Falcao - O nome é em homenagem ao clássico jogador brasileiro, mas o epíteto de ave de rapina assenta-lhe como uma luva. Um esfomeado predador, com apurado instinto e saltos inexequíveis, deu ao F.C. Porto a Liga Europa com um golo na final, contabilizando 17 no total do torneio, tentos que fazem dele o melhor marcador de qualquer competição europeia nos registos. No Atlético, foi a estrela em mais uma conquista da Liga Europa, à qual somou uma Supertaça Europeia na qual foi soberano. É o melhor marcador da história da selecção colombiana. Aquela longa lesão estragou-lhe a carreira e pôs o mundo a pensar onde teria chegado a Colômbia com ele em 2014, onde o seu substituto Teo mostrou que a sua habilidade mais rara é a de conseguir falhar o que um humano normal não conseguiria.

75 - Petr Cech - A conquista da Liga dos Campeões em 2012 por parte do Chelsea é um milagre difícil de entender. A explicação é complexa e compreende várias variáveis, mas é possível isolar a mais relevante: o guarda-redes checo foi insuperável. Segurou Barcelona e Bayern com paradas atrás de paradas, confiante e inabalável. Com a chegada da coqueluche Courtois, foi despachado para o clube rival, onde continua a mostrar todas as semanas o seu tremendo valor. O famigerado acidente, que atirou Hilário temporariamente para a baliza, deu a Cech aquele célebre capacete, uma das imagens mais icónicas do futebol que, juntamente com a sua qualidade, ficará na memória colectiva dos diletantes.

74 - Edgar Davids - Por falar em objectos marcantes no futebol, que dizer dos óculos futuristas do pitbull? Obrigado a usá-los graças a um glaucoma, em campo não lhe faltava visão. Irrequieto e agitado, juntava uma combatividade anormal com o engenho do seu refinado pé esquerdo. Quando tivermos definitivas certezas sobre a idade de Renato Sanches, podemos dizer com certezas quem é que se inspirou no jogo de quem.

73 - Juan Román Riquelme - Quando se fala na extinção actual dos chamados números 10 clássicos, suspira-se por este feiticeiro. Na Europa, não triunfou no Barcelona, mas ainda emanou o seu perfume ao serviço do Villarreal, onde teve a oportunidade de brilhar na Champions. Uma das estrelas da constelação albi-celeste, tomou a decisão de voltar prematuramente para a sua Argentina natal, onde se sentia verdadeiramente em casa, deixando o futebol europeu órfão da requintada destreza com que jogava e fazia jogar.

72 - Robert Lewandowski - Jürgen Klopp achou este caprichado ponta-de-lança, que andava a marcar alguns golitos no modesto campeonato polaco. Depois de uma primeira época pouco prolífera, tornou-se um dos avançados mais impiedosos do futebol europeu. Possante, guarnecido de técnica apreciável e um bloco de gelo quando o estádio se levanta à espera do seu inevitável golo, precisa de deixar crescer o cabelo para ficar definitivamente igual a um dos melhores personagens de Sopranos, também ele um frio e cruel assassino.

71 - Kun Aguero - Aguenta todas as cargas graças ao baixo centro de gravidade e pujança física. Um perigo à solta, com movimentações inteligentes e com remates que entram todos a provocar os postes. Deu o primeiro título ao City em 44 anos com o mítico golo no último minuto do campeonato. Com os constantes problemas físicos e uma média sobre-humana de golos por minuto quando está disponível, podemos apenas especular sobre o seu impacto se passasse mais tempo em campo do que na enfermaria.

70 - Iker Casillas - Antes de vir para o Dragão coleccionar likes no insta e frangos em campo, Iker assumiu-se como um ídolo de guardiões em todo o mundo. É o espanhol mais internacional de sempre, e conquistou tudo o que havia para conquistar sucessivas vezes. Aguçados reflexos, voz de comando e uma notável humildade e discrição elevaram-no a um dos símbolos do século no futebol mundial. Por isto tudo e por ter trazido uma das mulheres mais bonitas do mundo para a cidade mais bonita do mundo, chegou ao Dragão com créditos para gastar. O problema é que já os começa a esgotar.

69 - Clarence Seedorf - Aglomerava todas os ingredientes de craque: sapiência, uma anormal capacidade atlética, lucidez e um canhão na chuteira. Um homem respeitável, honesto e inteligente, assenta-lhe como uma luva a alcunha de Il Professore, que ganhou em Itália por ter tirado o mestrado em administração. As Ligas dos Campeões eram a suas sete quintas: venceu a competição por quatro vezes, ao serviço de três clubes distintos. One of the greats.


68 - Mats Hummels - Se Hummels tivesse jogado nos anos 70, seria ele conhecido como kaiser. É o central mais confortável com bola. Apoia o ataque com serenidade, elegância e impressionantes noções tácticas e colectivas. Defensivamente, antecipa jogadas com uma impecável leitura de jogo. Forma actualmente com Boateng uma deliciosa dupla que funciona como um autêntico duplo pivô construtor.

67 - Edwin Van der Sar - Na já referida defesa do Man. United que logrou catorze jogos consecutivos em branco na liga mais competitiva do mundo, estava atrás de Ferdinand e Vidic este gigante holandês. Dois metros de sobriedade, reacções instintivas e autoridade. Coleccionou uma vitrina de prémios colectivos e individuais, tendo vencido a sua última Premier League na juventude das suas quarenta primaveras. Terminou a carreira no topo e com um lugar reservado no Olimpo.

66 - Ángel Di María - Este habilidoso trinca-espinhas evoluiu de um espalha-brasas para um faz-tudo. No Real Madrid, tornou-se num incansável todo-o-terreno, abnegado e com um pé esquerdo com a precisão de um William Tell. Partiu a loiça na final de Lisboa. O meio-campo do Real Madrid é luxuoso, mas nunca conseguiram arranjar verdadeiro substituto para a dinâmica que imprimia, a atacar e a defender. Por agora, vai-se divertindo a arrasar a Liga Francesa com o seu ilimitado talento.

65 - Antonio Cassano - Mais conhecido pela faceta bad boy, pelas incontáveis parceiras sexuais, por constrangedoras declarações homofóbicas e por andar à porrada com o treinador, este filho-da-mãe ingrato nasceu com dois dos pés mais valiosos que a genética já concebeu. Tinha com a bola uma relação de estima e afinidade, e descobria passes onde o comum dos mortais não veria opções. Vejam este vídeo (cujo título faz uma arrojada questão) e perguntar-me-ão como não está no top 10. Antonio, o futebol nunca te irá perdoar a displicência.

64 - Frank Lampard - Poucos médios terão existido com a sua capacidade de chegada às zonas de finalização. Pela inteligência e colocação de remate, e por gostar mais de penalties que um caloiro num jantar de curso, tornou-se no médio com mais golos em todos os registos da Premier League e o melhor marcador da história do seu Chelsea. Além disso, parece que chamar-lhe génio pode ser aplicável para além do plano futebolístico.

63 - Nemanja Vidic - Para o melhor trio defensivo do século ficar completo, falta falar deste guarda-costas. Vidic era de betão, um segurança mordaz na marcação e insuperável no salto. Bravo, impiedoso e sólido como titânio. Foi escolhido como melhor jogador da Premier League por duas vezes, uma das quais na famosa época dos 14 clean sheets consecutivos. Se Donald Trump o colocasse na fronteira, não precisava de dizer ao México para pagar nada.


62 - Thiago Silva - Gosto de gabar os olheiros do meu clube por terem descoberto este diamante no humilde Duque de Caxias. Não triunfou na Invicta por causa de uma tuberculose. Curou-se no frio da Rússia e, em Itália, ganhou o estatuto de um dos melhores centrais do planeta e, porventura, o mais completo. Rápido, talentoso, com impecável presença de espírito e sempre infalível nas abordagens. Se dúvidas houvesse sobre a sua influência, tentem adivinhar quem esteve suspenso no famigerado 1-7, deixando o eixo defensivo entregue aos angustiados e angustiantes David Luiz e Dante.

61 - David Beckham - Se o leitor quiser pesquisar imagens de Beckham no Google, com tamanha nudez dará por si a roçar a fronteira da pornografia. David é um homem muito bonito e casou com a terceira Spice Girl mais jeitosa (desculpem, mas a Emma e a Geri sempre me encheram mais as medidas). Mas cabe-nos a nós, homens heterossexuais apaixonados pela bola, relembrar o jogador que não corria, parecia nem suar, mas que oferecia golos cantados a quilómetros de distância, produzia na bola curvas mais perigosas do que as da Christina Hendrix e que, quando queria acertar no buraco, era melhor que Tiger Woods.

60 - Wesley Sneijder - Foi usurpado de uma Bola d'Ouro que era sua por direito, quando em 2010 carregou o Inter à conquista da Champions e a selecção holandesa até à final do Mundial. Uma mina de criatividade, hábil com qualquer pé, autor de projéteis balísticos imparáveis e, do alto do seu metro e setenta, vislumbrava tudo o que os outros não viam. Desterrou-se criminalmente cedo, para o longínquo campeonato turco, longe dos palcos que continuou a merecer pisar.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Os 100 Craques Que Mais Me Marcaram (#100 - 80)

Ah, futebol... A dimensão religiosa dos ateus, a mais barata das drogas, o mundo onde uns centímetros fazem a diferença entre um lugar na história e um lugar no Candal.
Em tantos anos como apreciador deste nobre ofício, homens houve que se elevaram sobre os comuns mortais e me fizeram perder anos de vida só para os ver brilhar. Propus-me, por desafio pessoal, a realizar a desconfortável tarefa de elaborar uma lista de cem artistas, que compilasse aqueles cujo futebol mais entusiasmou.
No decorrer dos próximos dias, irei apresentar esta lista, dividida por cinco partes. Não houve metodologia científica envolvida neste processo. Esta compilação é resultado da contemplação do futebol enquanto arte. Arte com toda a acessão desse termo, aos níveis da criatividade e da emoção inerente.
A ordenação foi o misto possível entre o prazer que retirei do seu jogo e a sua marca no futebol como um todo. É tão arbitrária que eu próprio dou por mim a contestá-la. A hierarquia é, portanto, secundária e um puro exercício de organização. Sem mais delongas, eis os artistas:

100 - Mario Gómez - El Torero nasceu com um dote raro: o de saber sempre onde se colocar. A zona ideal, onde a bola poderia e deveria cair, parecia iluminar-se para ele, pela aparente facilidade com que surgia no espaço. Brincava com o risco do fora-de-jogo como um equilibrista e, com a oportunidade, era letal com qualquer parte legal do corpo. Campeão no Estugarda e no Bayern, onde somou golos bissemanais. Ah, e os dois tentos à Holanda no Euro 2012 são para ver e rever; pela estética e como recordação de que a técnica de Gómez, entretanto enferrujada por consecutivas lesões, não costumava ser assim tão rudimentar.

99 - Shunsuke Nakamura - Os seus livres eram drones tão precisos que se eles os enviasse para a Síria, os americanos não teriam mais de se preocupar com a possibilidade de atingir hospitais pediátricos. As curvas que desferia desafiavam as leis do movimento de Isaac Newton . Um ídolo no Celtic, quando esta equipa clássica frequentava mais amiúde os grandes palcos europeus. O melhor jogador asiático do meu tempo de vida.


98 - Diego Forlán - Depois de uma passagem desastrosa por Manchester, afirmou-se em Espanha como um dos grandes avançados a jogar na Europa, ao serviço de Villareal e Atlético. Móvel, engenhoso, tecnicamente munido e proprietário de um pontapé aprimorado, consolidou definitivamente o seu lugar na elite do futebol no Mundial 2010, onde foi eleito melhor jogador da competição após carregar o Uruguai até às meias-finais.

97 - Mário Jardel - O drogado que, aquando da eleição como deputado estadual no Brasil, se identificou como sendo politicamente de direita por ser "um cara direito demais", foi em tempos um sanguinário assassino em série. O seu tempo de salto e precisão de cabeçadas eram de tal forma marcantes que deram a Carlos Tê a analogia lírica perfeita . Fez com os cruzamentos de Drulovic e as movimentações de João Vieira Pinto magníficos casamentos. Na época seguinte à sua saída das Antas, o desconhecido Pena apresentava-se no F.C. Porto para ocupar o seu lugar na equipa, afirmando "Meu nome é Pena, não Jardel". Que Pena não ser Jardel.


96 - Jerôme Boateng - Esta positiva impressão é recente e gradual. Inicialmente, era um pino. Um daqueles polivalentes à John O'Shea, que joga mal em todo o lado. Depois, comecei a ver um central muito rápido e vigoroso. Desde a última época, promete mudar o paradigma do defesa central, ao construir jogo de forma tão constante como um médio criativo. Os seus passes longos são tão imaginativos e precisos que é difícil acreditar que se trata do mesmo matacão que tremia sempre que a redondinha lhe era enderaçada.


95 - Michael Carrick - Poucos médios terão sido tão injustamente desvalorizados. Além de uma capacidade anormal de passe e leitura de jogo, a sua inteligência posicional elevam-no acima dos demais, de uma forma tão relevante quanto subtil. Não se convençam por mim: esta laudatória lista de citações sobre Carrick por parte de algumas das lendas do desporto transmite a sua relevância melhor do que eu alguma vez poderia.

94 - Diego Godín - Se grande parte do mérito atribuído ao sucesso recente do Atlético está na liderança de Simeone, é preciso não esquecer o seu alter ego no relvado. Godín é a personificação da impetuosidade, concentração, competitividade e compostura táctica que caracteriza o batalhão que é este balneário. Na última jornada da época 2013/2014, marcou no Camp Nou o golo que deu o título ao Atlético, um prémio justíssimo para o grupo e, especialmente, para o comandante dessa armada.

93 - David Trezeguet - Este radioso sorriso do Rei David nos festejos é uma das mais vivas memórias futebolísticas da minha infância. O mais conhecido destes sorrisos foi na final do Euro 2000, quando havia golos a dar taças automáticas. Época após época, na Série A e na Champions, os golos caíam em catarata. Conhecia cada palmo da área como se fosse a sua sala de estar. Era ágil, inteligente e fulminante.



92 - Gheorge Hagi - Junho de 2000, eu tinha 9 anos e estava num casamento. Numa pequena sala, os convidados masculinos acumularam-se à volta de uma pequeníssima televisão para assistir ao Portugal - Roménia, do Europeu. Por entre cabeças e mau contacto na antena, distinguia-se nos romenos alguém que tratava a bola com tal subtileza e sabedoria que passei a acreditar em amor à primeira vista. Era o Maradona dos Balcãs, já com avançados 36 anos, a dar lições de futebol a jovens aficionados como eu. Um irrefutado craque.

91 - Fabio Cannavaro - Há um qualquer fenómeno místico em terras transalpinas que fomenta o surgimento dos defesas mais correctos e eficientes. Quando já não havia Baresi ou Maldini, Cannavaro conduziu a defesa italiana que foi a base da vitória no Mundial 2006. A sua eleição como melhor do mundo esse ano foi tudo menos unânime, mas ninguém atreve atacar a influência e qualidade deste central, que pouco mais alto era do que Moutinho.


90 - Juan Cuadrado - Considerado um flop no Chelsea, e sendo actualmente a terceira opção para o lugar de ala direito na Juventus (atrás de Dani Alves e do limitado Liechsteiner), limito-me a ter de remeter os leitores para o texto que redigi em 2014 de forma a justificar a inclusão deste tremendo talento.




89 - Jaap Stam - Se o leitor acha que o seu chefe é assustador, nunca teve de ser marcado homem a homem por este titã. Intimidava com o seu tamanho e a sua postura de liderança. Um Adamastor que não permitia dobrar o seu cabo. Eleito melhor defesa da Liga dos Campeões por duas vezes consecutivas e presença assídua na selecção holandesa, é um dos últimos da sua espécie.


88 - Henrik Larsson - A minha mãe sabe o quão temível era este sueco, já que teve de lavar a minha roupa interior depois da final da Taça UEFA de 2003. Duas golpadas certeiras, e no último lance do jogo, até Pedro Emanuel desesperou por ter cedido canto, consciente de que poderia ter dado a Larsson um pitéu perfeito, mortífero que era de cabeça. Acabou a carreira com 471 golos, entre equipas suecas, Celtic, United, Barça e selecção. Quando era golo e ele estava em campo, não era preciso ir ver quem marcou.



87 - Lúcio - Um chefão à antiga. Feio, mandão e insuperável na impulsão. Depois de uma carreira na Alemanha, onde ao serviço do Leverküsen foi melhor jogador da Bundesliga em 2002 (ano em que foi campeão mundial com Scolari e Anderson Polga) e posteriormente tricampeão pelo Bayern, ainda foi para o Inter limpar a Liga dos Campeões. Aliava a dureza a uma impressionante velocidade, rigor e personalidade.


86 - Hulk - Chegou em dia de apresentação, com nome de super-herói, um promissor arcaboiço, mas o Q.I. futebolístico de um Sancidino com trissomia. Cresceu e, com ele, cresceu o meu Porto. Balas de canhão, arrancadas devastadoras, demolia de tal forma nos contactos físicos que os árbitros desconfiavam da sua legalidade. Depois dos jogos contra o Benfica na época de Villas Boas, se Givanildo me fizesse uma serenata propondo matrimónio, sentir-me-ia impelido a aceitar.



85 - David Alaba - Quando Guardiola diz que um jogador é um Deus, temos de prestar atenção. A dimensão de polivalência que a sua carreira assumiu não é circunstancial. Alaba é adaptável e mutável porque tem todas as características de que um jogador precisa em qualquer posição e para qualquer função táctica. E um pé esquerdo que leva a bola a cair onde ele bem entender.



84 - J. S. Verón - Quem cresceu a ver a Argentina do início do século, tem de se lembrar deste careca que era tão raçudo quanto talentoso. Brilhou na Série A e na Premier League, onde encantava pela força, stamina e visão de jogo. Quando se lembrava de puxar a culatra, o guarda-redes só poderia esperar que a bola não lhe quebrasse o nariz.



83 - Cesc Fábregas - No Arsenal, tornou-se um dos jogadores mais talentosos e respeitados do planeta. Um médio com uma formidável classe e discernimento. Depois de vários defesos cheios de novelas, regressou à Catalunha, onde inevitavelmente encaixou como a última peça do puzzle. Foi uma ajuda predominante na Espanha que conquistou tudo. A sua argúcia táctica até lhe permitiu jogar a falso 9. O seu actual momento de forma não apaga tudo o que construiu.



82 - Michael Ballack - Até o Fenómeno o lixar na final, o Mundial 2002 foi seu. Um médio de elite tremendamente completo, fisicamente robusto e com invejável engenho. Sabia tudo sobre o jogo e fartou-se de marcar golos pelo seu potente remate e noções do espaço. E não se controlava quando a UEFA impunha a sua lei sobre a lei da justiça desportiva.



81 - Oliver Kahn - Um dos jogadores mais carismáticos da história e provavelmente aquele com pior feitio. Acumulou episódios de raiva dignos de um pittbull maltratado. Era um espectáculo dentro do espectáculo. Por trás desta problemática personalidade, estava um dos melhores de sempre a calçar as luvas. Grande, intimidante, marcar-lhe um golo era penosa tarefa. Ganhou tudo o que havia para ganhar ao serviço do seu Bayern e foi eleito melhor jogador do Mundial 2002, apesar do frango concedido ao Fenómeno na final.


80 - Rio Ferdinand - Em 2008/2009, o Man. United bateu um dos mais impressionantes recordes defensivos do jogo, conseguindo catorze jogos consecutivos sem sofrer golos na EPL. Ferdinand formava então com Vidic aquela que foi a mais rija e inabalável dupla de centrais que presenciei. Nas duas transferências que protagonizou, para Leeds e depois para o Man. United, bateu o recorde do defesa mais caro do futebol. Um impressionante atleta, sólido, carismático e com uma tremenda influência em todo o grupo.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Ditadura das canetas

Ontem tive o prazer de me estrear no exercício do meu direito de voto enquanto sócio portista.
Quando entrei e me dirigi à minha mesa de voto, uma menina bonita recolheu o meu cartão, ditou o meu número de sócio ao colega e entregou-me o boletim. Acto contínuo, sorriu para mim e fez o alerta:
"Se quiser votar na lista candidata, pode colocar já o boletim na urna".
É uma nuance deliciosa destas eleições: os estatutos do F.C. Porto não prevêem votos em branco. Tudo isto porque o boletim não consiste na tradicional cruzinha. O boletim mais não é do que os nomes das pessoas que constituem o elenco da direcção. A opção do eleitor consiste apenas em colocar a lista imaculada na urna ou tornar o voto nulo, acrescentado ao boletim alguma inscrição.
De resto, habituado que estou à prática democrática, imaginava tudo aquilo feito com maior rigor, secretismo e profissionalismo. Nunca havendo votado em eleições desportivas, deduzi pelas institucionais que teria um local devidamente resguardado que acomodasse o meu direito ao secretismo, uma caneta presa a um cordel e a privacidade para tirar uma selfie com o boletim de forma a mostrar no facebook como cumpri o meu dever. Nada: apenas uma descuidada zona de mesas avulsas e o balcão de um bar, destinados aos judas manifestantes que não votam acriticamente.
Ora, quando me dirijo para a tal zona, constato que não tenho caneta. Aquilo que numa situação normal (assumindo como normalidade não haver canetas para ceder em local de eleições) me obrigaria a votar em branco, nestas circunstâncias obrigar-me-ia a atribuir o voto a Pinto da Costa. Tudo se iluminou: quem não leva caneta é obrigado a votar em Pinto da Costa. Foi aí que me apercebi deste maquiavélico plano, que consiste na segregação dos sócios contestatários. Quem vota na lista encabeçada por Pinto da Costa, não tem de fazer absolutamente mais nada senão depositar na urna o boletim no momento em que este lhe é entregue. Quem pretende não fazer parte do rebanho, tem a vida mais dificultada. Desde logo, terá de se dirigir a uma zona específica para traidores. Alinhados num balcão, de caneta em punho, como se estivessem a apostar na Placard, a rasurar nomes e redigir protestos. Dado o carácter despótico deste sufrágio, concluí logicamente que estaríamos a ser filmados, identificados e posteriormente a nossa traição será justamente punida. De resto, olhei imediatamente à volta à procura de locais de onde pudesse emanar gás que pusesse logo fim a esta manada. Não vi nada, mas joguei pelo seguro e coloquei a camisola por cima do nariz e da boca.
Pedi uma caneta emprestada ao senhor ao meu lado. Disse-me que com certeza, que só queria terminar de escrever algo. "As suas últimas palavras", pensei. Não sei se seriam, mas foram-no certamente para mim: quando me virei para lhe devolver a caneta, depois de rasurar os nomes da lista única, o senhor já lá não estava. Vou guardá-la como símbolo da resistência contra o autoritarismo, o sistema corrompido e a falta de esferográficas.
Quando se começou a especular acerca do F.C. Porto pós-Pinto da Costa, o plano parecia óbvio. Com uma estrutura oleada e consistente, o presidente iria apontar um príncipe herdeiro (provavelmente Antero), que daria continuidade ao projecto e asseguraria uma estável transição para uma nova era, alicerçada nos mesmos valores de sucesso e competência. As últimas épocas vieram assombrar a naturalidade desta rota, colocando os adeptos a questionar se será de todo benéfico prosseguir este caminho, já que o sucesso é miragem e a competência muito incerta.
Tudo isto porque houve uma clara inversão das prioridades: o sucesso desportivo não era só o objectivo do clube. Era a causa e a consequência de todo o trabalho da máquina. Não era só a estrutura que levava às vitórias, era o sucesso que alimentava a estrutura. Vitórias dão dinheiro, através de prémios e vendas, dão prestígio, dão adeptos satisfeitos, ambiente saudável, condições para a prolongação do êxito. Priorizar os ganhos pessoais não foi apenas um erro do ponto de vista da irresponsabilidade e do desprezo dos adeptos que os alimentam. Foi um plano mal pensado do ponto de vista pessoal. Não dá para continuar a sugar de uma vaca seca.
Enunciar os erros dos últimos anos seria redundante, porque estes não só são óbvios, como já foram inúmeras vezes repetidas por outros portistas frustrados. A escolha de um treinador inexperiente para liderar um longo e ambicioso projecto foi de uma atroz incompetência. Vinha com promessas de torres de vigilância, de aposta nos jovens e da adopção um tiki taka à portuguesa. O tiki taka de Lopetegui tinha idiossincrasias peculiares: era um tiki taka em que os centrais faziam passes longos, os jogadores sem bola não se movimentavam e a percentagem de posse de bola se sobrepunha a uma progressão sustentada no terreno. Estas características expunham desde logo uma evidência: ou Lopetegui não percebia as próprias ideias, ou as suas ideias eram péssimas. Confirmou-se que ambas eram verdade. As individualidades que constituíam o plantel da última época ajudaram a disfarçar ligeiramente os defeitos patentes. Quando uma equipa em crise e sem ideias de jogo tem de resolver as situações com Varelas, Osvaldos, Maxis, Ángels, Cissokhos, Suks e Chidozies, tudo fica demasiado exposto. E com essa exposição veio à tona a falta de planeamento nos bastidores, mas sobretudo da tal priorização de negócios ocultos e compadrio.
Nestas eleições, não foi (apenas) a popularidade de Pinto da Costa que foi a votos. O estatuto e respeito do presidente são inquestionáveis, de tal forma que foi por trás dessa respeitabilidade que muitas trafulhices foram sendo encobertas. A gratidão a Pinto da Costa é eterna e imutável, assim como permanecerá inalterada a reverência à sua liderança. O que foi a votos foi sobretudo a manutenção do status quo. E foram pesadas questões éticas e morais que se sobrepuseram, porventura, até às desportivas.
Pinto da Costa será sempre recordado como um dos melhores dirigentes da história do futebol mundial. Tem agora o seu derradeiro grande desafio: não deixar como última imagem um papel permissivo de fantoche mediador de negócios desportivamente ruinosos e de escudo protector de um grupo administrativo que se apropriou de uma estrutura virada para a vitória e a transformou num submundo de incompetência, jogos empresariais, lavagem de dinheiro e desculpas esfarrapadas. Se tudo se mantiver assim, não serão necessárias canetas para que Pinto da Costa saia pela inglória porta pequena, vítima de um nível de exigência e de uma fasquia que foi ele próprio a elevar.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Pai Nosso

Estou assombrado pelo espírito do Charlie que afinal ne sommes pas.
Estou perdido. Entre aqueles que não perceberam a piada ou aqueles que não a admitem. Entre os severamente ofendidos e os que ainda se estão a rir como se esta fosse a piada mais engraçada do mundo (nem sequer é original, o Bloco definitivamente não se lembrou dela, já foi mais do que usada em campanhas pró-homossexualidade).
"Não faz sentido a analogia". As palavras são de Manuel Barbosa, porta-voz da Conferência Episcopal. A incapacidade de decifrar piadas que recorrem a metáforas, ironia e outras figuras de estilo é amiúde um problema patológico, uma dislexia. Nada surpreendente: quer o senhor acredite realmente no seu pai espiritual, quer o faça por ser charlatão, terá com certeza uma doença. Ou é esquizofrénica ou é moral. "Penso que há um certo aproveitamento, num período em que na Igreja se está a viver um tempo forte de Quaresma, depois da Páscoa e o Ano de Misericórdia. Não sei se é coincidência ou se é propositado", lacrimeja Manuel Barbosa. Juntem a vossa gargalhada à minha.
O CDS também está chocado. De facto, não se faz: "utilizar imagens religiosas para alegadamente tirar um proveito político" é rasteiro. "Em política, como na vida, podemos discordar das ideias dos outros, mas não podemos ofender os sentimentos dos outros", chora Mota Soares. Baixem as armas: feriram o democrata-cristão. A dor na ferida católica começou a latejar, mas não pode ser assumida. Demagogia é o único analgésico. Não pode é ser hipócrita, caro Mota Soares. Não se esqueça que Passos Coelho, primeiro-ministro que o senhor serviu, é um conhecido ateu e decidiu encontrar a fé em plena campanha para as legislativas, quando disse não se separar da sua cruz. Até Ângelo Correia, seu pai político, que o conhece desde petiz, estranhou o repentino achar de tamanha fé e até ironizou. Ganhar votos através das crenças alheia é muito à lá política americana no século XX. Acusar o Bloco de fazer o inverso é muito pouco cristão. E se já se provou que a memória deste senhor é curta, relembre-se estas nojentas declarações deste mesmo senhor, de há onze anos: Mota Soares disse que vê "como absolutamente normal que as cerimónias oficiais incluam o benzer de uma ponte, de um edifício", já que (atenção, isto sim pode ferir susceptibilidades) "mesmo no Estado há espaço para o divino e é preciso não confundir laicidade com ateísmo".
Então há espaço para o divino na política ou não há espaço para o divino, caro democrata-cristão? Ofensivo não é haver uma inocente piada religiosa em campanha. Ofensivo é termos tido um ministro sem o alcance mental, democrático e de serviço público para entender que liberdade religiosa não é só para religiosos, é para ateus praticantes também. Que acha bem benzer pontes em cerimónias estatais, mas a pilinha casada, essa, só pode combinar com pipi, nem que seja o Estado a obrigar. A liberdade do contribuinte é importante, Sr. Mota Soares; mas sacudir a liberdade de expressão e a obrigação de laicidade do Estado para o lado, como meros inconvenientes, é meio caminho andado para o regresso de uma ditadura baseada em Fátima.
Na política portuguesa, nunca lutarei sempre do mesmo lado. A minha bússola política está sempre dividida entre a liberdade social do cidadão, defendida pelo Bloco, a liberdade do cidadão enquanto agente económico, defendida por...bem, absolutamente ninguém. Explorarei essa questão em segundas núpcias. Hoje, senti sobretudo que todas as partes descuraram um segmento importante da discussão. A questão dos paternalismos tem de ser debatida na sua plenitude e ofende-me que isso não esteja a ser feito. Porque eu tenho três pais: o meu progenitor de sangue; o pai de todos nós, que está no céu e que seja santificado o seu nome; e o Pai Natal, que há cinco anos me deu uma guitarra eléctrica e que por isso não gosto de o ver negligenciado.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Redenção de rabo ao léu

Joshua Milton Blahyi é um pastor evangélico liberiano. Caminha a lentos e pesados passos pelo lamaçal de um campo de refugiados do país. A acompanhá-lo está um jovem da terra, que vai expressando por questões a sua admiração por Joshua, pelo seu trabalho e coragem. Aproximam-se de uma barraca onde se senta uma senhora a descascar fruta. «É esta a senhora», apresenta o jovem. «É a Lovetta».
Lovetta tem a poderosa tranquilidade das mulheres africanas, como uma majestosa leoa. Não aparenta qualquer agrado com estas visitas. Mas é boa anfitriã: entra na barraca que tem como lar e vai buscar duas cadeiras de plástico onde sentar os convidados. Senta-se também perante eles, com o mesmo ar de indiferença. Ao grupo junta-se uma jovem, filha de Lovetta, camisola às riscas, postura tímida, o olho direito visivelmente danificado.
Há dezasseis anos atrás, Joshua não era um pacífico ministro religioso. Era o General Butt Naked, um sanguinário líder de guerra, canibal, violador e um dos mais prolíferos assassinos que a história alguma vez registou. A alcunha é inusitada e roça o cómico, assim como a sua origem: Blahyi lutava completamente nu. Dizia que se movimentava mais rápido sem roupa e que conseguia desta forma activar mais rapidamente os seus poderes espirituais que ele sempre teve. Outrora satânicos, agora cristãos.
A guerra civil liberiana foi um caos destruidor de mortes avulsas e anarquia. No meio deste cenário apocalíptico, o General Butt Naked começou a tornar-se um mito. Os ataques do seu "exército" começavam a ser contados com os mais vis detalhes. O General recrutava crianças para serem seus soldados, esfaqueava mulheres grávidas na barriga, dilacerava e comia os corpos de civis inocentes. Quando instado a estimar as mortes de que foi responsável, declarou com frieza: "Se tivesse de calcular, diria que nunca menos de vinte mil".
O General é agora pastor e está sentado perante duas das suas vítimas do passado. Joshua fala de como encontrou Deus e em como procura o perdão das pessoas que magoou. Lovetta mantém a compostura e não pára de comer fruta enquanto o pastor fala. Ao terminar, Joshua pede-lhe que conte exactamente o que se passou. Lovetta cede a um pouco de fragilidade quando refere essa malfadada manhã de sábado, há dezasseis anos. A filha tinha pouco mais de um ano e estava ao seu colo. Lovetta relata como começou a sentir a agitação nas ruas, gritos, pessoas a correr. Ouvia que o General Butt Naked estava a caminho. O marido estava a dormir. Sem aviso, o General entrou em sua casa. Ao tentar atingi-la, acerta com o cano da sua arma em cheio no olho direito da bebé, cegando-o. A mãe não larga a criança e procura refugiar-se no quarto onde dorme o marido. O General persegue-as e, ao ver o homem, mata-o a sangue frio. A imagem que guarda do homem integralmente nu, armado em ambas as mãos, ávido de morte e sexo, a persegui-la com o perturbador olhar dos maníacos iria assombrá-la para sempre.
O General Butt Naked tem agora roupa, mas parece mais despido que nunca. O silêncio que se segue é mais doloroso que as palavras. As lágrimas começam a formar-se nos olhos da filha de Lovetta. Do olho cego, escorre a primeira. Joshua não tem palavras para quebrar a taciturnidade. A maçã de Adão treme e fica difícil dizer que o seu olhar é de culpa ou de pena. A expressão de Lovetta permanece impávida, mas os seus olhos transpiram ressentimento, medo, uma dor adormecida.
Partilham todos, no entanto, uma ilusão: a ilusão de irmandade, de um Pai partilhado. Juntos, dão as mãos e rezam, agradecendo a Deus a oportunidade de reconciliação e a capacidade de perdão.
Vivemos todos em contra-relógio, pelejando o tarde demais, prevenindo ou corrigindo o arrependimento. Não é preciso religião para mudar a vida, mas dificilmente haverá conforto mais fácil de obter. Bem-aventurados são aqueles que encontraram na religião um sentido: enquanto tentamos viver procurando ramos que nos impeçam de cair desesperadamente num precipício de vazio e solidão, os religiosos encontraram-nos na ilusão. Um mundo onde os ramos não se partem e eles levitam sem o peso da dor, da auto-responsabilização e da falta de objectivo maior. Em que o amor pela divindade é tal que se torna maior que o amor-próprio, mais importante que a vida, mais forte que a dor. Uma ilusão tão ofuscante que é capaz de perdoar o mais atroz criminoso. Se a inveja não fosse um pecado, certamente os invejaria.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O tempo em que se fumava nas redacções

Agora que Marcelo Rebelo de Sousa abandonará o seu espaço de comentário televisivo, abre-se um vazio na recomendação de livros às treze ou catorze pessoas que ainda os lêem em Portugal. Eu visto esse fardo e faço-o para juntar a minha voz no aconselhamento de um livro já muito comentado e anunciado. A Máquina de Tritura Políticos conta a história do jornal O Independente, fundado por uma dupla tão bizarra quanto popular: Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas.
É a história de um amor improvável entre um bon-vivant e um incansável trabalhador, entre um homem da cultura e um homem da política, entre um génio da arte e da análise e um mestre do tacto humano e do atrevimento. Que caminhos distintos seguiram: um leva vida pacata e respeitada; outro despiu-se definitivamente dos poucos escrúpulos e fez mal a ele e ao país.
O Independente era um jornal de direita, conservador, liberal e patriótico. Mas era sobertudo audaz e inovador. Rasgou convenções e modernizou a informação. Viver a recente história política ao olhos de uma redacção de jornal única no país é um exercício lúdico e incomensuravelmente útil. Caras conhecidas noutros contextos originam divertidas contradições e confirmações, principalmente para a minha geração. Nasci em 1990, pelo que grande parte dos acontecimentos descritos no livro foram contados por terceiros, ou de todo desconhecidos, mas nunca vividos.
Antes de ler a obra, as minhas maiores reservas prendiam-se com a escrita. É na verdade empolgante, inteligente, clara e surpreendentemente burlesca. Ler este livro diverte imenso. E fez renascer a visão romântica do jornalismo que se foi esvanecendo em mim: uma visão de contra-poder, de feridas abertas, de luta por ideais. Numa redacção carburada a cigarros, álcool e drogas, não se passavam dias a reescrever o que assessores entendem como informação útil. Esmiuçavam-se as mais ínfimas entranhas do tecido social.
Não era um jornal promotor da igualdade; era até elitista e sobranceiro. Mas lutou para mostrar que quem detém o poder no mundo não sabe mais  do que os restantes. Não é necessariamente mais capaz, mais experiente ou mais apto. Apenas fez as opções certas. Cabe ao jornalismo expor as deficiências do sistema. Que falta fazia um Independente no Portugal deste século.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Mão estendida



Brincar aos presidentes tem os seus custos. Paulo de Morais ignorou-os e propôs-se a uma solitária jornada contra os males da corrupção, um paladino pronto a batalhar esse grande cancro do serviço público. A sua campanha foi, no entanto, leviana. Repleta de acusações ocas, dedos apontados para o vazio e uma exaustiva insistência no mesmo fruto sem sumo. Rapidamente foi rotulado de demagogo e inconsequente, e a sua campanha perdeu o seu natural fulgor anti-sistema.
Paulo de Morais decidiu correr para a presidência sem riscos. Se ganhasse, ocuparia o cargo político mais elevado da nossa república. Se obtivesse um bom resultado, teria as despesas de campanha pagas e sairia altamente credibilizado para um eventual regresso definitivo à vida política. Se nas urnas as coisas não corressem bem, Paulo Morais teria as despesas pagas por donativos do povo.
O progressivo afastamento dos partidos das candidaturas presidenciais é de salutar. Ajuda sobremaneira à independência dos actores e dos poderes. No entanto, a decisão de concorrer ao cargo tem de ser suportada por mais do que alguns comentários nas redes sociais. Se alguém se quer candidatar a Presidente da República e não consegue arranjar previamente algumas dezenas de milhares de euros para o fazer, está a correr sozinho e para realização pessoal e a sua tentativa é dispensável.
Mas nada disto seria para mim tão ultrajante se não fosse a imagem que encabeça este texto e que foi partilhado pelo próprio Paulo de Morais. Este narcísico defensor da pureza política podia ter tentado angariar preventivamente o dinheiro necessário à candidatura, aproveitando até assim para averiguar a sua base de apoio. Preferiu, no entanto, estender a mão aos seus fiéis eleitores, depois de derrotado, para que lhe paguem uma campanha de auto-promoção mal planeada e sem controlo, utilizando uma imagem que só se costuma ver acompanhada de fotografias de meninos africanos ou vítimas de violência doméstica, não de um homem do sistema a fingir-se mártir.
Há uma boa razão para a existência de subvenções estatais para as candidaturas em Portugal. Visam garantir que os apoios privados não interferem nos resultados democráticos. É um grande problema, por exemplo, nas eleições norte-americanas, regionais ou nacionais. Os donativos privados levam a que os sufrágios sejam comprados por aqueles que tiverem mais dinheiro. Depois, naturalmente, os legisladores eleitos irão beneficiar politicamente aquelas empresas que contribuíram para a sua eleição. É uma lógica óbvia e altamente anti-democrática que se faz bem em combater. De resto, a nível de curiosidade, partilho uma proposta recente na Califórnia de um grupo que quer exigir que os legisladores utilizem na sua roupa os logótipos das marcas que mais generosas doações fazem aos respectivos, como fazem os corredores da NASCAR. Dessa forma, toda a gente saberá explicitamente para quem é que eles realmente trabalham. Por muito demagógica que possa parecer a ideia, é um abrir de olhos para a realidade da influência de dinheiros privados nas causas e consequências das políticas públicas.
Quando Paulo de Morais fala de querer combater a corrupção, estará em grande parte a falar de retirar dinheiros privados da política. A ironia de querer travar essa luta à custa de dinheiros privados requeridos postumamente é impagável.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

More than F.R.I.E.N.D.S.

Numa era em que a sociedade se bipolariza cada vez mais entre os polícias do politicamente correcto e os rebeldes da polémica avulsa, quero partilhar uma história curiosa: aquando do 11 de Setembro, esta cena de um episódio de Friends foi excluída da transmissão televisiva. A cena é protagonizada por aquele que é inevitavelmente o meu personagem favorito da série, o mestre do sarcasmo Chandler Bing. Em plena lua-de-mel com a sua alma-gémea - a obsessiva-compulsiva Monica Geller - depara-se no aeroporto com o aviso de que é proibido fazer piadas sobre bombas, sequestros de aviões ou tudo o que envolva terrorismo aéreo. Chandler Bing, claro está, faz uma piada sobre o aviso. É detido pelas autoridades às quais, posteriormente, explica que o mal não está nas piadas, está nas bombas, e que se ele tivesse realmente uma bomba não faria piadas sobre isso. Claro que os atentados em Nova Iorque deixaram todo o mundo ocidental em estado de choque e, se há altura em que a extra-sensibilidade é compreensível, aquela é sem dúvida merecedora desse estatuto. Mas a ironia dificilmente poderia ser maior: censuraram um personagem num episódio em que ele alega precisamente que não deviam censurá-lo por fazer piadas sobre algo mau, mas sim censurar quem pratica esse mal. Touché, Chandler, touché.
Eu conheço Friends melhor que a minha própria vida: não sei o que almocei na segunda-feira, mas sei de cor todas as falas, de todos os episódios, de todas as dez temporadas. Passei anos a ver os DVDs religiosamente. Também por já conhecer todas as piadas é que, aos meus olhos, a sua influência é ainda mais palpável. É incontável o número de piadas que ainda hoje se ouvem constantemente em sitcoms, e outras séries de humor, que foram adaptadas, baseadas, ou flagrantemente plagiadas, das palavras dos amigos.
É uma série hilariante, carinhosa, poderosa. O poder é tal que eu sei exactamente a fala que se segue, a expressão e o timing com que vai ser expressa, e continuo a rir-me como um maníaco mal esta é dita. Ver um episódio de Friends é terapêutico, e não só por todas as endorfinas positivas libertadas durante uma sessão de riso descontrolado. É-o porque todos ambicionamos ter uma vida exactamente assim, com amigos com essa honestidade e boa disposição. Uma vida em que até os maiores problemas são relativizados em detrimento das verdadeiramente coisas importantes da vida: diversão e companheirismo. E todos estes valores são-nos passados por um grupo que, fazendo jus ao nome, é aquele que apresentou mais química na história da televisão.
cast de Friends voltará a juntar-se em Fevereiro na televisão. Eu não recebi esta notícia com o entusiasmo que seria de esperar para um confesso fanático. Não se trata de um episódio especial da série, apenas uma participação de todo o elenco num special de homenagem a um dos realizadores. Ficarei com certeza mais triste do que satisfeito. Friends deveria ser eterno, mas acabou na altura certa. Não fez dez temporadas para espremer todo o leite da vaca, erro de tantas séries cometem. Prosseguiu em tempo e evoluiu em qualidade. A última temporada, não sendo a melhor, está repleta de momentos brilhantes que ainda foram a tempo de marcar a cultura popular. À medida que se aproxima do final, apercebemo-nos de que Friends ensina também isso: que o tempo passa, as vidas mudam, mas a essência de sentimentos tão fortes pode permanecer inalterada. É uma tragédia da vida, essa dicotomia entre o desejo de que algo seja eterno, mas a consciência de que se o fosse perderia o valor.
Mas há coisas que ficam para sempre. Quando os Friends se voltarem a juntar, não vamos ter Bamboozled, ou o Ugly Naked Guy, nem sequer o Gunther ou a Janice. Ninguém vai cantar a Smelly Cat, por isso o Ross não pode acompanhar na gaita-de-foles.  Mas porra, os amigos vão-se rever e nós vamos rever os nossos amigos. Nas palavras de Mr. Bing, «that makes me feel so warm in my hallow tin chest».

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Um cretino cheio de vinténs

Contestei imediatamente o prémio FIFA para o melhor treinador de 2015, ganha por Luis Enrique. Para mim, um prémio individual destes deve ser dado ao treinador que mais clara influência positiva teve no sucesso do conjunto por si treinado, sendo Sampaoli, seleccionador chileno, o exemplo perfeito disso mesmo. Não tenho dúvidas, no entanto, de quem seria o claro vencedor caso elegessem o pior treinador do ano. E, pasme-se, não escolheria Lopetegui: Van Gaal seria a minha imediata nomeação.
Primeiro, algum contexto: Van Gaal é um treinador com estatuto e currículo. O grande destaque da sua carreira terá sido a conquista da Liga dos Campeões em 1994/95 ao serviço do Ajax, com uma fantástica equipa em que figuravam os nomes de Van der Sar, Danny Blind, Rijkaard, Litmanen, os irmãos De Boer, Edgar Davids, Overmars ou Patrick Kluivert. Treinou também com bastante sucesso o Barcelona, com óbvio sucesso o Bayern de Munique e com relativo sucesso a selecção holandesa. Já no Manchester United, o seu actual clube, "sucesso" não tem sido um termo muito usado para classificar a sua prestação. Porém, pior do que isso, Van Gaal tem chocado pelos seus comentários públicos desmedidos. Muitos treinadores demonstram não ter papas na língua ao longo da carreira: os casos de Jesus e Mourinho são óbvios exemplos para nós. Mas o sucesso costuma ser um pré-requisito para esse tipo de atitude pública.
Vamos a alguns exemplos destas declarações públicas descabidas, e vamos cingir-nos a esta época desportiva. Este Verão, a contratação de Martial chocou o mundo do futebol, pelos astronómicos valores pagos por um jovem de vinte anos ainda pouco mediatizado. Quando se trata de um jogador de tão tenra idade, é preciso toda a cautela para que a loucura capitalista em que se tornou o jogo não o afecte psicologicamente ao ponto de afectar o seu rendimento. Isto é senso comum. Não para Van Gaal: em vez de desvalorizar absolutamente o valor e proteger o jogador da máfia que circunda o negócio futebolístico, o holandês fez questão de classificar publicamente o preço de Martial como "grotesco". Quando Martial marcou três golos nos seus primeiros três remates pelo clube, Van Gaal não se prontificou a engolir. Encolheu os ombros, e por entre elogios forçados, não se conteve em fazer uma desvalorização, atribuindo também o seu sucesso à sorte.
A meio da época, depois da época passada não ter passado do quarto lugar e depois de na época actual já ter sido eliminado da Liga dos Campeões e de ocupar o sexto lugar no campeonato, considerou que o ano de 2015 foi "muito bom". Na segunda época à frente do clube mais titulado do futebol inglês, com dezenas e dezenas de milhões para investir no plantel, num dos clubes com mais associados do mundo, Van Gaal acha que está a fazer um bom trabalho e di-lo sem aparente ponta de vergonha.
Outra, porventura a minha favorita, pelo descaramento quase trumpiano: Van Gaal alegou ter sido o primeiro a usar bloco de notas no futebol. Não há muito que comentar ou provar aqui, na verdade. Acreditar realmente nisso seria crer que, nos mais de cem anos de futebol que antecederam Van Gaal, todos os treinadores tinham todas as suas ideias e planos na cabeça, ou então escreviam-nos em guardanapos, ou em papiro, ou em pedras como os mandamentos. Deixem-me reforçar isto, porque o ridículo é tal e deixa-nos de tal forma abananados que nem dá para reagir condignamente: Van Gaal começou a treinar nos anos 90 e acha que foi o primeiro treinador a usar um caderno para tirar notas.
Se o leitor abriu o link do parágrafo anterior para confirmar a veracidade da descabida afirmação, ter-se-á deparado com o magnum opus das declarações ultrajantes de Van Gaal: ele afirmou, preto no branco, que ganha montes de dinheiro e que não faz trabalho nenhum. Outros fazem o trabalho por ele. Não dá para imaginar uma situação mais adequada para uma entidade patronal despedir alguém, ou no mínimo baixar o salário, quando o próprio empregado admite não fazer nada e receber muito dinheiro para isso. O despudor é tal que não me alongarei mais a constatar o óbvio.
Todas as semanas há mais bacoradas. Para a Taça de Inglaterra, e dado o apertado calendário do futebol britânico, as equipas costumam rodar os onzes de forma a descansar os jogadores importantes e dar minutos aos menos utilizados, principalmente quando jogam contra adversários menos cotados. Era o caso do United, que recebeu o modesto Sheffield United, sétimo classificado do terceiro escalão do futebol inglês. Van Gaal decidiu manter os titulares. Jogou pelo seguro, são as suas opções, preferia despachar o jogo com facilidade, não dá para atacá-lo por isso. A verdade é que a equipa venceu já na compensação, com um golo de penalty. Os adeptos, compreensivelmente descrentes com mais uma exibição inócua, começaram a abandonar o estádio antes do final da partida. Quando confrontado com este facto, Van Gaal voltou a zombar toda o grupo de pessoas que suporta a instituição, ao adiantar que os adeptos poderiam ter saído mais cedo para fugir do trânsito.
Van Gaal persiste em usar do seu estatuto para desrespeitar a dimensão de um clube com uma história  tão vasta e na qual o holandês não passará de uma fase negra, de um erro de casting, de um período de embaraço. Entrou numa fase de loucura arrogante, de autismo presunçoso. Uma embaraçosa insolência, insustentada e despropositada.
Não sou apoiante do United, mas amantes do futebol como eu vimos apaixonadamente os red devils a conquistarem a Europa sucessivamente. Vimos Sir Alex Ferguson com Giggs e Scholes, Schmeichel e Beckham, Gary e Phil Neville, Andy Cole e Dwight Yorke, Ronaldo e Rooney, Ferdinand e Vidic. Vimo-lo, muitas vezes, a fazer omoletes sem ovos. O futebol não precisa da sua ilusão de grandeza, Sr. Van Gaal. O futebol precisa, isso sim, de um United de volta ao seu merecido sucesso. E precisa que o senhor se esconda, com o primeiro bloco de notas algumas vez usado no futebol, a chorar saudosamente o já ido tempo em que as suas ideias tiveram relevância. É que se é para o senhor não fazer nada e ganhar muito dinheiro, deixe a direcção do seu clube dar o seu dinheiro a alguém que não seja um cretino.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Reféns

António Costa passou a campanha toda num limbo que deixa qualquer eleitorado confuso. Esteve perdido entre a retórica da ideologia ultra-liberal e o pragmatismo dos números. Por um lado, quis combater o ataque aos serviços públicos e seus funcionários; por outro quis descolar-se da figura que representa os pecados das políticas públicas que antecederam o resgate. Não deixa de ser curioso que tantos socialistas apontem agora o dedo a Marcelo por essa táctica demagógica.
Esta estratégia saiu furada: a esquerda acusou os ataques e nem lhe confiou o voto útil; a direita, maioritariamente moderada, continuou a ver em Costa um perigoso regresso ao passado. Costa perdeu as eleições para primeiro-ministro, mas ninguém sabia ainda que espaço parlamentar ocuparia. Depois das eleições, por via de acordos pós-eleitorais, obteve-se uma resposta às dúvidas do eleitorado: este PS assumia o poder executivo e colava-se definitivamente à esquerda. Não foi uma opção, foi uma necessidade. Costa é um fantoche partidário e deixou-se manipular de forma em tudo semelhante à maneira como se deixou levar por pressões internas para trair Seguro.
O governo está na fase de lua-de-mel. Agora, para além de corrigir disparates pegados – o restabelecimento dos feriados era presumível e saúda-se - e provocar as suas próprias ideias descabeladas – a alteração do regime de exames a meio do ano lectivo é unanimemente absurdo – somam-se medidas que têm em comum um aumento progressivo da despesa. Isto é, por si só, um problema. Mas mais do que isso, emana uma perigosa mensagem de que toda a austeridade e controlo orçamental mais não foi do que instauração à força de um regime ideológico anti-Estado.
Louvam-se algumas ideias. Em relação às taxas moderadoras, caminha-se para uma solução equilibrada entre o regabofe e o desumano. Se calhar a perigosa mensagem de que entramos numa nova fase dourada não seria tão forte se o governo não dependesse de dois partidos que fizeram dessa ideia uma bandeira, e que acreditam piamente que a dívida é mitologia neo-liberal. 
A reposição das 35 horas semanais merece uma discussão por si só. Foi medida prioritária do governo e anunciada para entrar em vigor a 1 de Julho. Como os partidos que suportam o governo exigem que esta seja implementada no imediato, o Ministério das Finanças já arranca cabelos e garantiu que "irá propor soluções para concilar a semana de 35 horas com o imprescindível controlo da despesa pública". Coitados: começam a deparar-se com a frustração de tentar que a lógica e o bom senso imperem, mas acabar esbarrar contra um muro de teimosia e interesses. Despesa pública, que coisa estranha é essa? Planeia-se portanto agora uma greve geral altamente irresponsável e que retira toda a credibilidade das greves que marcam lutas verdadeiramente importantes. Os sindicatos dão constantes tiros nos próprios pés, levando a que a opinião pública lhes seja adversa e que ninguém os leve a sério. O problema é que, agora, a máquina corporativa que controla todos os poderes sindicais tem uma faca no pescoço do primeiro-ministro.
Quando o acordo de esquerda foi assinado, faziam-se apostas sobre quem seria o primeiro a provocar o divórcio: António Costa, quando as sondagens indicassem que podia ir a votos com segurança; Catarina Martins, quando percebesse que a sua génese anti-sistema não se coaduna com uma posição de poder; ou Jerónimo, a qualquer momento. Costa tem para já mãos atadas; Catarina Martins segura-se, por um lado por orgulho, por outro, quero crer, se calhar ingenuamente, por responsabilidade. O PCP, esse, vai controlando as marionetas. Quando se argumentava que este acordo com a extrema-esquerda era perigoso não se estava a voltar à retórica dos comunistas que comiam criancinhas, como quiseram caricaturar alguns defensores. Estava-se a falar, isso sim, deste tipo de chantagem.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A Estrela de David

É o facto mais poético da vida: todos nós somos organicamente formados por matéria que teve origem em estrelas mortas. Stardust, chamam-lhe em inglês.
Bowie viveu e criou no equilíbrio que existe entre a harmonia e a diversidade do cosmos. Entre o caos e o sentido. Entre a ordem e a poesia. A escolha da Space Oddity para banda sonora da chegada à lua faz sentido para além da letra e temática espacial da música; Bowie é uma figura universal.
A pop é agora um termo quase depreciativo. A universalidade da diversidade e inovação deu lugar à universalidade da simplicidade e artificialidade. A pop de Bowie era uma macedónia enérgica de todos os estilos musicais fundidos num género próprio. Foi essa a sua criatividade, a sua unicidade. Era excêntrico, flamboyant, por vezes bizarro, quase esquizofrénico. Era original.
Bowie morreu dias depois de lançar o seu último disco, ciente de que o estava a fazer. Passarei os próximos dias a ouvi-lo, escutando atentamente as obras de um homem perto da linha de chegada, prestes a ser libertado. Dificilmente se conceberá estado espiritual mais honesto para a criação artística. Ninguém sabia da sua doença; Bowie foi-se embalado por admiração e respeito, não por pena e comoção. Até a esvair-se no cosmos foi diferente. Dizemos dos mortos que são mais uma estrela no céu. Bowie soube cintilar na vida.