quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O tempo em que se fumava nas redacções

Agora que Marcelo Rebelo de Sousa abandonará o seu espaço de comentário televisivo, abre-se um vazio na recomendação de livros às treze ou catorze pessoas que ainda os lêem em Portugal. Eu visto esse fardo e faço-o para juntar a minha voz no aconselhamento de um livro já muito comentado e anunciado. A Máquina de Tritura Políticos conta a história do jornal O Independente, fundado por uma dupla tão bizarra quanto popular: Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas.
É a história de um amor improvável entre um bon-vivant e um incansável trabalhador, entre um homem da cultura e um homem da política, entre um génio da arte e da análise e um mestre do tacto humano e do atrevimento. Que caminhos distintos seguiram: um leva vida pacata e respeitada; outro despiu-se definitivamente dos poucos escrúpulos e fez mal a ele e ao país.
O Independente era um jornal de direita, conservador, liberal e patriótico. Mas era sobertudo audaz e inovador. Rasgou convenções e modernizou a informação. Viver a recente história política ao olhos de uma redacção de jornal única no país é um exercício lúdico e incomensuravelmente útil. Caras conhecidas noutros contextos originam divertidas contradições e confirmações, principalmente para a minha geração. Nasci em 1990, pelo que grande parte dos acontecimentos descritos no livro foram contados por terceiros, ou de todo desconhecidos, mas nunca vividos.
Antes de ler a obra, as minhas maiores reservas prendiam-se com a escrita. É na verdade empolgante, inteligente, clara e surpreendentemente burlesca. Ler este livro diverte imenso. E fez renascer a visão romântica do jornalismo que se foi esvanecendo em mim: uma visão de contra-poder, de feridas abertas, de luta por ideais. Numa redacção carburada a cigarros, álcool e drogas, não se passavam dias a reescrever o que assessores entendem como informação útil. Esmiuçavam-se as mais ínfimas entranhas do tecido social.
Não era um jornal promotor da igualdade; era até elitista e sobranceiro. Mas lutou para mostrar que quem detém o poder no mundo não sabe mais  do que os restantes. Não é necessariamente mais capaz, mais experiente ou mais apto. Apenas fez as opções certas. Cabe ao jornalismo expor as deficiências do sistema. Que falta fazia um Independente no Portugal deste século.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Mão estendida



Brincar aos presidentes tem os seus custos. Paulo de Morais ignorou-os e propôs-se a uma solitária jornada contra os males da corrupção, um paladino pronto a batalhar esse grande cancro do serviço público. A sua campanha foi, no entanto, leviana. Repleta de acusações ocas, dedos apontados para o vazio e uma exaustiva insistência no mesmo fruto sem sumo. Rapidamente foi rotulado de demagogo e inconsequente, e a sua campanha perdeu o seu natural fulgor anti-sistema.
Paulo de Morais decidiu correr para a presidência sem riscos. Se ganhasse, ocuparia o cargo político mais elevado da nossa república. Se obtivesse um bom resultado, teria as despesas de campanha pagas e sairia altamente credibilizado para um eventual regresso definitivo à vida política. Se nas urnas as coisas não corressem bem, Paulo Morais teria as despesas pagas por donativos do povo.
O progressivo afastamento dos partidos das candidaturas presidenciais é de salutar. Ajuda sobremaneira à independência dos actores e dos poderes. No entanto, a decisão de concorrer ao cargo tem de ser suportada por mais do que alguns comentários nas redes sociais. Se alguém se quer candidatar a Presidente da República e não consegue arranjar previamente algumas dezenas de milhares de euros para o fazer, está a correr sozinho e para realização pessoal e a sua tentativa é dispensável.
Mas nada disto seria para mim tão ultrajante se não fosse a imagem que encabeça este texto e que foi partilhado pelo próprio Paulo de Morais. Este narcísico defensor da pureza política podia ter tentado angariar preventivamente o dinheiro necessário à candidatura, aproveitando até assim para averiguar a sua base de apoio. Preferiu, no entanto, estender a mão aos seus fiéis eleitores, depois de derrotado, para que lhe paguem uma campanha de auto-promoção mal planeada e sem controlo, utilizando uma imagem que só se costuma ver acompanhada de fotografias de meninos africanos ou vítimas de violência doméstica, não de um homem do sistema a fingir-se mártir.
Há uma boa razão para a existência de subvenções estatais para as candidaturas em Portugal. Visam garantir que os apoios privados não interferem nos resultados democráticos. É um grande problema, por exemplo, nas eleições norte-americanas, regionais ou nacionais. Os donativos privados levam a que os sufrágios sejam comprados por aqueles que tiverem mais dinheiro. Depois, naturalmente, os legisladores eleitos irão beneficiar politicamente aquelas empresas que contribuíram para a sua eleição. É uma lógica óbvia e altamente anti-democrática que se faz bem em combater. De resto, a nível de curiosidade, partilho uma proposta recente na Califórnia de um grupo que quer exigir que os legisladores utilizem na sua roupa os logótipos das marcas que mais generosas doações fazem aos respectivos, como fazem os corredores da NASCAR. Dessa forma, toda a gente saberá explicitamente para quem é que eles realmente trabalham. Por muito demagógica que possa parecer a ideia, é um abrir de olhos para a realidade da influência de dinheiros privados nas causas e consequências das políticas públicas.
Quando Paulo de Morais fala de querer combater a corrupção, estará em grande parte a falar de retirar dinheiros privados da política. A ironia de querer travar essa luta à custa de dinheiros privados requeridos postumamente é impagável.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

More than F.R.I.E.N.D.S.

Numa era em que a sociedade se bipolariza cada vez mais entre os polícias do politicamente correcto e os rebeldes da polémica avulsa, quero partilhar uma história curiosa: aquando do 11 de Setembro, esta cena de um episódio de Friends foi excluída da transmissão televisiva. A cena é protagonizada por aquele que é inevitavelmente o meu personagem favorito da série, o mestre do sarcasmo Chandler Bing. Em plena lua-de-mel com a sua alma-gémea - a obsessiva-compulsiva Monica Geller - depara-se no aeroporto com o aviso de que é proibido fazer piadas sobre bombas, sequestros de aviões ou tudo o que envolva terrorismo aéreo. Chandler Bing, claro está, faz uma piada sobre o aviso. É detido pelas autoridades às quais, posteriormente, explica que o mal não está nas piadas, está nas bombas, e que se ele tivesse realmente uma bomba não faria piadas sobre isso. Claro que os atentados em Nova Iorque deixaram todo o mundo ocidental em estado de choque e, se há altura em que a extra-sensibilidade é compreensível, aquela é sem dúvida merecedora desse estatuto. Mas a ironia dificilmente poderia ser maior: censuraram um personagem num episódio em que ele alega precisamente que não deviam censurá-lo por fazer piadas sobre algo mau, mas sim censurar quem pratica esse mal. Touché, Chandler, touché.
Eu conheço Friends melhor que a minha própria vida: não sei o que almocei na segunda-feira, mas sei de cor todas as falas, de todos os episódios, de todas as dez temporadas. Passei anos a ver os DVDs religiosamente. Também por já conhecer todas as piadas é que, aos meus olhos, a sua influência é ainda mais palpável. É incontável o número de piadas que ainda hoje se ouvem constantemente em sitcoms, e outras séries de humor, que foram adaptadas, baseadas, ou flagrantemente plagiadas, das palavras dos amigos.
É uma série hilariante, carinhosa, poderosa. O poder é tal que eu sei exactamente a fala que se segue, a expressão e o timing com que vai ser expressa, e continuo a rir-me como um maníaco mal esta é dita. Ver um episódio de Friends é terapêutico, e não só por todas as endorfinas positivas libertadas durante uma sessão de riso descontrolado. É-o porque todos ambicionamos ter uma vida exactamente assim, com amigos com essa honestidade e boa disposição. Uma vida em que até os maiores problemas são relativizados em detrimento das verdadeiramente coisas importantes da vida: diversão e companheirismo. E todos estes valores são-nos passados por um grupo que, fazendo jus ao nome, é aquele que apresentou mais química na história da televisão.
cast de Friends voltará a juntar-se em Fevereiro na televisão. Eu não recebi esta notícia com o entusiasmo que seria de esperar para um confesso fanático. Não se trata de um episódio especial da série, apenas uma participação de todo o elenco num special de homenagem a um dos realizadores. Ficarei com certeza mais triste do que satisfeito. Friends deveria ser eterno, mas acabou na altura certa. Não fez dez temporadas para espremer todo o leite da vaca, erro de tantas séries cometem. Prosseguiu em tempo e evoluiu em qualidade. A última temporada, não sendo a melhor, está repleta de momentos brilhantes que ainda foram a tempo de marcar a cultura popular. À medida que se aproxima do final, apercebemo-nos de que Friends ensina também isso: que o tempo passa, as vidas mudam, mas a essência de sentimentos tão fortes pode permanecer inalterada. É uma tragédia da vida, essa dicotomia entre o desejo de que algo seja eterno, mas a consciência de que se o fosse perderia o valor.
Mas há coisas que ficam para sempre. Quando os Friends se voltarem a juntar, não vamos ter Bamboozled, ou o Ugly Naked Guy, nem sequer o Gunther ou a Janice. Ninguém vai cantar a Smelly Cat, por isso o Ross não pode acompanhar na gaita-de-foles.  Mas porra, os amigos vão-se rever e nós vamos rever os nossos amigos. Nas palavras de Mr. Bing, «that makes me feel so warm in my hallow tin chest».

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Um cretino cheio de vinténs

Contestei imediatamente o prémio FIFA para o melhor treinador de 2015, ganha por Luis Enrique. Para mim, um prémio individual destes deve ser dado ao treinador que mais clara influência positiva teve no sucesso do conjunto por si treinado, sendo Sampaoli, seleccionador chileno, o exemplo perfeito disso mesmo. Não tenho dúvidas, no entanto, de quem seria o claro vencedor caso elegessem o pior treinador do ano. E, pasme-se, não escolheria Lopetegui: Van Gaal seria a minha imediata nomeação.
Primeiro, algum contexto: Van Gaal é um treinador com estatuto e currículo. O grande destaque da sua carreira terá sido a conquista da Liga dos Campeões em 1994/95 ao serviço do Ajax, com uma fantástica equipa em que figuravam os nomes de Van der Sar, Danny Blind, Rijkaard, Litmanen, os irmãos De Boer, Edgar Davids, Overmars ou Patrick Kluivert. Treinou também com bastante sucesso o Barcelona, com óbvio sucesso o Bayern de Munique e com relativo sucesso a selecção holandesa. Já no Manchester United, o seu actual clube, "sucesso" não tem sido um termo muito usado para classificar a sua prestação. Porém, pior do que isso, Van Gaal tem chocado pelos seus comentários públicos desmedidos. Muitos treinadores demonstram não ter papas na língua ao longo da carreira: os casos de Jesus e Mourinho são óbvios exemplos para nós. Mas o sucesso costuma ser um pré-requisito para esse tipo de atitude pública.
Vamos a alguns exemplos destas declarações públicas descabidas, e vamos cingir-nos a esta época desportiva. Este Verão, a contratação de Martial chocou o mundo do futebol, pelos astronómicos valores pagos por um jovem de vinte anos ainda pouco mediatizado. Quando se trata de um jogador de tão tenra idade, é preciso toda a cautela para que a loucura capitalista em que se tornou o jogo não o afecte psicologicamente ao ponto de afectar o seu rendimento. Isto é senso comum. Não para Van Gaal: em vez de desvalorizar absolutamente o valor e proteger o jogador da máfia que circunda o negócio futebolístico, o holandês fez questão de classificar publicamente o preço de Martial como "grotesco". Quando Martial marcou três golos nos seus primeiros três remates pelo clube, Van Gaal não se prontificou a engolir. Encolheu os ombros, e por entre elogios forçados, não se conteve em fazer uma desvalorização, atribuindo também o seu sucesso à sorte.
A meio da época, depois da época passada não ter passado do quarto lugar e depois de na época actual já ter sido eliminado da Liga dos Campeões e de ocupar o sexto lugar no campeonato, considerou que o ano de 2015 foi "muito bom". Na segunda época à frente do clube mais titulado do futebol inglês, com dezenas e dezenas de milhões para investir no plantel, num dos clubes com mais associados do mundo, Van Gaal acha que está a fazer um bom trabalho e di-lo sem aparente ponta de vergonha.
Outra, porventura a minha favorita, pelo descaramento quase trumpiano: Van Gaal alegou ter sido o primeiro a usar bloco de notas no futebol. Não há muito que comentar ou provar aqui, na verdade. Acreditar realmente nisso seria crer que, nos mais de cem anos de futebol que antecederam Van Gaal, todos os treinadores tinham todas as suas ideias e planos na cabeça, ou então escreviam-nos em guardanapos, ou em papiro, ou em pedras como os mandamentos. Deixem-me reforçar isto, porque o ridículo é tal e deixa-nos de tal forma abananados que nem dá para reagir condignamente: Van Gaal começou a treinar nos anos 90 e acha que foi o primeiro treinador a usar um caderno para tirar notas.
Se o leitor abriu o link do parágrafo anterior para confirmar a veracidade da descabida afirmação, ter-se-á deparado com o magnum opus das declarações ultrajantes de Van Gaal: ele afirmou, preto no branco, que ganha montes de dinheiro e que não faz trabalho nenhum. Outros fazem o trabalho por ele. Não dá para imaginar uma situação mais adequada para uma entidade patronal despedir alguém, ou no mínimo baixar o salário, quando o próprio empregado admite não fazer nada e receber muito dinheiro para isso. O despudor é tal que não me alongarei mais a constatar o óbvio.
Todas as semanas há mais bacoradas. Para a Taça de Inglaterra, e dado o apertado calendário do futebol britânico, as equipas costumam rodar os onzes de forma a descansar os jogadores importantes e dar minutos aos menos utilizados, principalmente quando jogam contra adversários menos cotados. Era o caso do United, que recebeu o modesto Sheffield United, sétimo classificado do terceiro escalão do futebol inglês. Van Gaal decidiu manter os titulares. Jogou pelo seguro, são as suas opções, preferia despachar o jogo com facilidade, não dá para atacá-lo por isso. A verdade é que a equipa venceu já na compensação, com um golo de penalty. Os adeptos, compreensivelmente descrentes com mais uma exibição inócua, começaram a abandonar o estádio antes do final da partida. Quando confrontado com este facto, Van Gaal voltou a zombar toda o grupo de pessoas que suporta a instituição, ao adiantar que os adeptos poderiam ter saído mais cedo para fugir do trânsito.
Van Gaal persiste em usar do seu estatuto para desrespeitar a dimensão de um clube com uma história  tão vasta e na qual o holandês não passará de uma fase negra, de um erro de casting, de um período de embaraço. Entrou numa fase de loucura arrogante, de autismo presunçoso. Uma embaraçosa insolência, insustentada e despropositada.
Não sou apoiante do United, mas amantes do futebol como eu vimos apaixonadamente os red devils a conquistarem a Europa sucessivamente. Vimos Sir Alex Ferguson com Giggs e Scholes, Schmeichel e Beckham, Gary e Phil Neville, Andy Cole e Dwight Yorke, Ronaldo e Rooney, Ferdinand e Vidic. Vimo-lo, muitas vezes, a fazer omoletes sem ovos. O futebol não precisa da sua ilusão de grandeza, Sr. Van Gaal. O futebol precisa, isso sim, de um United de volta ao seu merecido sucesso. E precisa que o senhor se esconda, com o primeiro bloco de notas algumas vez usado no futebol, a chorar saudosamente o já ido tempo em que as suas ideias tiveram relevância. É que se é para o senhor não fazer nada e ganhar muito dinheiro, deixe a direcção do seu clube dar o seu dinheiro a alguém que não seja um cretino.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Reféns

António Costa passou a campanha toda num limbo que deixa qualquer eleitorado confuso. Esteve perdido entre a retórica da ideologia ultra-liberal e o pragmatismo dos números. Por um lado, quis combater o ataque aos serviços públicos e seus funcionários; por outro quis descolar-se da figura que representa os pecados das políticas públicas que antecederam o resgate. Não deixa de ser curioso que tantos socialistas apontem agora o dedo a Marcelo por essa táctica demagógica.
Esta estratégia saiu furada: a esquerda acusou os ataques e nem lhe confiou o voto útil; a direita, maioritariamente moderada, continuou a ver em Costa um perigoso regresso ao passado. Costa perdeu as eleições para primeiro-ministro, mas ninguém sabia ainda que espaço parlamentar ocuparia. Depois das eleições, por via de acordos pós-eleitorais, obteve-se uma resposta às dúvidas do eleitorado: este PS assumia o poder executivo e colava-se definitivamente à esquerda. Não foi uma opção, foi uma necessidade. Costa é um fantoche partidário e deixou-se manipular de forma em tudo semelhante à maneira como se deixou levar por pressões internas para trair Seguro.
O governo está na fase de lua-de-mel. Agora, para além de corrigir disparates pegados – o restabelecimento dos feriados era presumível e saúda-se - e provocar as suas próprias ideias descabeladas – a alteração do regime de exames a meio do ano lectivo é unanimemente absurdo – somam-se medidas que têm em comum um aumento progressivo da despesa. Isto é, por si só, um problema. Mas mais do que isso, emana uma perigosa mensagem de que toda a austeridade e controlo orçamental mais não foi do que instauração à força de um regime ideológico anti-Estado.
Louvam-se algumas ideias. Em relação às taxas moderadoras, caminha-se para uma solução equilibrada entre o regabofe e o desumano. Se calhar a perigosa mensagem de que entramos numa nova fase dourada não seria tão forte se o governo não dependesse de dois partidos que fizeram dessa ideia uma bandeira, e que acreditam piamente que a dívida é mitologia neo-liberal. 
A reposição das 35 horas semanais merece uma discussão por si só. Foi medida prioritária do governo e anunciada para entrar em vigor a 1 de Julho. Como os partidos que suportam o governo exigem que esta seja implementada no imediato, o Ministério das Finanças já arranca cabelos e garantiu que "irá propor soluções para concilar a semana de 35 horas com o imprescindível controlo da despesa pública". Coitados: começam a deparar-se com a frustração de tentar que a lógica e o bom senso imperem, mas acabar esbarrar contra um muro de teimosia e interesses. Despesa pública, que coisa estranha é essa? Planeia-se portanto agora uma greve geral altamente irresponsável e que retira toda a credibilidade das greves que marcam lutas verdadeiramente importantes. Os sindicatos dão constantes tiros nos próprios pés, levando a que a opinião pública lhes seja adversa e que ninguém os leve a sério. O problema é que, agora, a máquina corporativa que controla todos os poderes sindicais tem uma faca no pescoço do primeiro-ministro.
Quando o acordo de esquerda foi assinado, faziam-se apostas sobre quem seria o primeiro a provocar o divórcio: António Costa, quando as sondagens indicassem que podia ir a votos com segurança; Catarina Martins, quando percebesse que a sua génese anti-sistema não se coaduna com uma posição de poder; ou Jerónimo, a qualquer momento. Costa tem para já mãos atadas; Catarina Martins segura-se, por um lado por orgulho, por outro, quero crer, se calhar ingenuamente, por responsabilidade. O PCP, esse, vai controlando as marionetas. Quando se argumentava que este acordo com a extrema-esquerda era perigoso não se estava a voltar à retórica dos comunistas que comiam criancinhas, como quiseram caricaturar alguns defensores. Estava-se a falar, isso sim, deste tipo de chantagem.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A Estrela de David

É o facto mais poético da vida: todos nós somos organicamente formados por matéria que teve origem em estrelas mortas. Stardust, chamam-lhe em inglês.
Bowie viveu e criou no equilíbrio que existe entre a harmonia e a diversidade do cosmos. Entre o caos e o sentido. Entre a ordem e a poesia. A escolha da Space Oddity para banda sonora da chegada à lua faz sentido para além da letra e temática espacial da música; Bowie é uma figura universal.
A pop é agora um termo quase depreciativo. A universalidade da diversidade e inovação deu lugar à universalidade da simplicidade e artificialidade. A pop de Bowie era uma macedónia enérgica de todos os estilos musicais fundidos num género próprio. Foi essa a sua criatividade, a sua unicidade. Era excêntrico, flamboyant, por vezes bizarro, quase esquizofrénico. Era original.
Bowie morreu dias depois de lançar o seu último disco, ciente de que o estava a fazer. Passarei os próximos dias a ouvi-lo, escutando atentamente as obras de um homem perto da linha de chegada, prestes a ser libertado. Dificilmente se conceberá estado espiritual mais honesto para a criação artística. Ninguém sabia da sua doença; Bowie foi-se embalado por admiração e respeito, não por pena e comoção. Até a esvair-se no cosmos foi diferente. Dizemos dos mortos que são mais uma estrela no céu. Bowie soube cintilar na vida.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Trumpianço

Hoje é a cerimónia dos Globos de Ouro e eu aproveito para criar uma nova categoria e desde já atribuir o prémio. O Globo de Ouro para a crónica mais estúpida de 2016 vai para... este palhaço.
Exaltei-me. Fui violento, e devo corrigir-me. Fazer juízos de carácter baseados numa opinião é injusto e de baixo nível. Desconhecia o sujeito. Chama-se Gustavo Cardoso, é professor do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do College d'Études Mondiales na FMSH, em Paris.
Devo dizer-me surpreendido: para alguém com essas credenciais, demonstra uma gritante falta de conhecimento das diferentes realidades políticas. Associa duas pessoas que são antagónicas em tudo, usando como ponto em comum terem tido ambos espaço na televisão antes de se candidatarem. É apenas isso.
Tento ser organizado na desconstrução das ideias das pessoas de quem discordo. Aqui não há sequer muito por onde explorar. Ou há tanto que é trabalho ingrato. A grande falácia nisto tudo é a equivalência de credibilidades. O autor coloca Marcelo e Trump na mesma categoria de "celebridades", o que é de um ultraje risível. Coloca um reality show ao mesmo nível de um programa de comentário da actualidade política. Coloca um idiota herdeiro de uma fortuna a um professor catedrático, antigo líder do PSD e respeitado opinion maker.  Porque a imagem que Marcelo construiu ao longo dos anos foi sempre dentro da área política. Ele usou de uma plataforma para expor a sua personalidade política e ganhar dessa forma o respeito dos espectadores. Dizer que Marcelo é o Trump destas eleições, como o Sr. Gustavo Cardoso faz explicitamente, é insultar todos os que respeitam o professor, e esse é um grupo que vai muito mais além daqueles que irão votar nele.
Não estou portanto a fazer apenas aqui a apologia de Marcelo. A comparação não é apenas ofensiva para ele, mas para todo o sistema político português. A condescendência do último parágrafo é injuriosa, sendo também irónica: acusa indirectamente o eleitorado português de superficialidade, depois de ele próprio apresentar toda uma análise leviana e oca.
Relacionado com este ponto, é incontornável abordar a questão das capacidades intelectuais de ambos. São tão díspares que seria de esperar que um investigador de renome as tivesse suficientes para ter vergonha em sequer ousar fazer tal comparação. Trump é, objectivamente, um homem ignorante e desconhecedor. Enunciar as demonstrações de estupidez do Sr. Trump, mesmo que me cingisse às mais escandalosas, daria a este texto dimensões impublicáveis.
Qualquer candidato que fizesse ou dissesse as coisas que Trump fez e disse era automaticamente excluído pelo povo português. Não estou a referir-me ao seu racismo: a extrema-direita cresce exponencialmente também na Europa. Estou a falar da sua nítida, palpável e manifesta estupidez. Há uma grande avanço civilizacional, para não dizer intelectual, do cidadão comum europeu em relação ao cidadão comum norte-americano. Nós já não vamos com merdas óbvias. Os truques baratos e a estupidez pornográfica são imediatamente denunciados. É por isso que Obama, na segunda eleição, ganharia por uma margem brutal na Europa e na sua terra não foi assim. Eles estiveram na iminência de eleger um mórmon psicopata. Não há comparação possível entre os nossos maus políticos e os maus políticos deles.
O autor desta crónica teve um lampejo de inspiração divina. Ocorreu-lhe a brilhante associação de dois candidatos de contextos tão distintos, por ambos aparecerem regularmente na televisão antes de se candidatarem. Tentou partir dessa premissa para construir todo um texto que, por não ter o mínimo alicerce argumentativo, se tornou redundante e entediante. Sem ponta por onde se lhe pegue.
Esta comparação descabida entre Trump e Marcelo só terá uma de duas origens: o autor está ciente do ridículo da comparação, mas é um potente instrumento de campanha contra o professor, usando-se de um proeminente órgão de comunicação para deitar ao lixo o seu descaramento e brindar-nos com críticas gratuitas; ou o Sr. Gustavo Cardoso acha mesmo que as duas personagens são "celebridades" realmente comparáveis e confirma que se trata de um analista superficial, desconhecedor e com uma preocupante dificuldade em distinguir os conceitos de fama, reputação e mediatismo.
É triste. Mas podemos aproveitar todos para nos regozijarmos do facto de, aparentemente, as nossas "celebridades" serem cada vez mais elitistas. O Sr. Gustavo Cardoso não vê diferença entre Medina Carreira ou Miguel Esteves Cardoso e os concorrentes da Casa dos Segredos. Não nos trate então com tamanha condescendência, Sr. Gustavo Cardoso: haverá povo intelectualmente mais evoluído do que este?

sábado, 9 de janeiro de 2016

Teimosia Dogmática

É sabido que a demagogia é o lado negro da democracia. Usamos do sufrágio para escolher a pessoa mais fiável. De forma a mostrar que são eles a pessoa procurada, os políticos optam por usar todo o tipo de artimanhas questionáveis para pôr em causa o adversário, o que desde logo deveria pôr também em causa a sua própria moralidade. É uma pescada de rabo na boca, ingrata e inevitável. Nas eleições presidenciais, em que toda uma carreira e percurso político são avaliados, vasculhar o passado do oponente é o 1.0.1. da estratégia. Isso é aceite e em muitas medidas útil. O problema é que isto pode ser anulado por algo que todos nós deveríamos saber reconhecer: se aquilo que um dia fomos representasse o que somos, tudo o que fizemos entretanto foi em vão.

Quero esclarecer que não me refiro às contradições em que Marcelo, como outros políticos, entram para agradar a todos ou salvar a sua imagem. Apenas argumento que ir buscar atitudes do passado que não estão intrinsecamente erradas, mas que contradizem o que a pessoa em questão defende ou faz no presente, é a admissão de que a teimosia é melhor que a humildade.

Pessoas que adaptam a opinião à realidade deviam ser as mais confiáveis por serem as mais razoáveis. Não falo de valores, falo de ideias. Se alguém mantivesse as mesmas opiniões e postura ao longo das décadas, seria para mim um político de menos valor, porque não se demonstrou aberto à mudança, à evolução. Alguém inteligente tem a sua sustentação argumentativa, mas se alguém discordar de si e a sua justificação for argumentativamente, factualmente e legitimamente mais lógica, uma pessoa inteligente está aberta a mudar a sua perspectiva. Como pode mudar com novas leituras, com novas experiências. A personalidade política de qualquer um, político ou cidadão, está em constante mutação. As convicções que permanecem estáticas são as que estão ligadas a dogmas, e isso é bem mais perigoso do que alguém que tem a modéstia de alterar a sua percepção do mundo.

Quando Platão apresentou a postura de Sócrates, resumida na famosa máxima "Eu só sei que nada sei", não fez uma declaração da sua ignorância ou falta de carácter; mas sim de que a realidade desconhecida é imensamente maior e mais relevante do que a sua visão da realidade por si percepcionada.

É preciso mudar a hierarquia de valores humanos: quando a teimosia é encarada como força e convicção e é mais valorizada do que a humildade socrática, estamos no caminho da guerra eterna. Porque o tipo de mentalidade assente num leque de opiniões estagnado é um obstáculo ao avanço civilizacional e está na origem da falta dos consensos; consensos pelos quais os promotores desta filosofia ironicamente rogam até à exaustão. Na política, há uma vergonha explícita de, ao mudar ou ceder, ser-se considerado fraco. Para mim, alguém forte seria precisamente alguém que não se submetesse a essa vergonha.