segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Redenção de rabo ao léu

Joshua Milton Blahyi é um pastor evangélico liberiano. Caminha a lentos e pesados passos pelo lamaçal de um campo de refugiados do país. A acompanhá-lo está um jovem da terra, que vai expressando por questões a sua admiração por Joshua, pelo seu trabalho e coragem. Aproximam-se de uma barraca onde se senta uma senhora a descascar fruta. «É esta a senhora», apresenta o jovem. «É a Lovetta».
Lovetta tem a poderosa tranquilidade das mulheres africanas, como uma majestosa leoa. Não aparenta qualquer agrado com estas visitas. Mas é boa anfitriã: entra na barraca que tem como lar e vai buscar duas cadeiras de plástico onde sentar os convidados. Senta-se também perante eles, com o mesmo ar de indiferença. Ao grupo junta-se uma jovem, filha de Lovetta, camisola às riscas, postura tímida, o olho direito visivelmente danificado.
Há dezasseis anos atrás, Joshua não era um pacífico ministro religioso. Era o General Butt Naked, um sanguinário líder de guerra, canibal, violador e um dos mais prolíferos assassinos que a história alguma vez registou. A alcunha é inusitada e roça o cómico, assim como a sua origem: Blahyi lutava completamente nu. Dizia que se movimentava mais rápido sem roupa e que conseguia desta forma activar mais rapidamente os seus poderes espirituais que ele sempre teve. Outrora satânicos, agora cristãos.
A guerra civil liberiana foi um caos destruidor de mortes avulsas e anarquia. No meio deste cenário apocalíptico, o General Butt Naked começou a tornar-se um mito. Os ataques do seu "exército" começavam a ser contados com os mais vis detalhes. O General recrutava crianças para serem seus soldados, esfaqueava mulheres grávidas na barriga, dilacerava e comia os corpos de civis inocentes. Quando instado a estimar as mortes de que foi responsável, declarou com frieza: "Se tivesse de calcular, diria que nunca menos de vinte mil".
O General é agora pastor e está sentado perante duas das suas vítimas do passado. Joshua fala de como encontrou Deus e em como procura o perdão das pessoas que magoou. Lovetta mantém a compostura e não pára de comer fruta enquanto o pastor fala. Ao terminar, Joshua pede-lhe que conte exactamente o que se passou. Lovetta cede a um pouco de fragilidade quando refere essa malfadada manhã de sábado, há dezasseis anos. A filha tinha pouco mais de um ano e estava ao seu colo. Lovetta relata como começou a sentir a agitação nas ruas, gritos, pessoas a correr. Ouvia que o General Butt Naked estava a caminho. O marido estava a dormir. Sem aviso, o General entrou em sua casa. Ao tentar atingi-la, acerta com o cano da sua arma em cheio no olho direito da bebé, cegando-o. A mãe não larga a criança e procura refugiar-se no quarto onde dorme o marido. O General persegue-as e, ao ver o homem, mata-o a sangue frio. A imagem que guarda do homem integralmente nu, armado em ambas as mãos, ávido de morte e sexo, a persegui-la com o perturbador olhar dos maníacos iria assombrá-la para sempre.
O General Butt Naked tem agora roupa, mas parece mais despido que nunca. O silêncio que se segue é mais doloroso que as palavras. As lágrimas começam a formar-se nos olhos da filha de Lovetta. Do olho cego, escorre a primeira. Joshua não tem palavras para quebrar a taciturnidade. A maçã de Adão treme e fica difícil dizer que o seu olhar é de culpa ou de pena. A expressão de Lovetta permanece impávida, mas os seus olhos transpiram ressentimento, medo, uma dor adormecida.
Partilham todos, no entanto, uma ilusão: a ilusão de irmandade, de um Pai partilhado. Juntos, dão as mãos e rezam, agradecendo a Deus a oportunidade de reconciliação e a capacidade de perdão.
Vivemos todos em contra-relógio, pelejando o tarde demais, prevenindo ou corrigindo o arrependimento. Não é preciso religião para mudar a vida, mas dificilmente haverá conforto mais fácil de obter. Bem-aventurados são aqueles que encontraram na religião um sentido: enquanto tentamos viver procurando ramos que nos impeçam de cair desesperadamente num precipício de vazio e solidão, os religiosos encontraram-nos na ilusão. Um mundo onde os ramos não se partem e eles levitam sem o peso da dor, da auto-responsabilização e da falta de objectivo maior. Em que o amor pela divindade é tal que se torna maior que o amor-próprio, mais importante que a vida, mais forte que a dor. Uma ilusão tão ofuscante que é capaz de perdoar o mais atroz criminoso. Se a inveja não fosse um pecado, certamente os invejaria.

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