quinta-feira, 27 de abril de 2017

O Monstro É Foda

Fui assistir ao concerto de ontem do Caetano Veloso no Coliseu com motivações diversas. Em primeiro lugar, trata-se de um ícone da música popular brasileira. Assistir a Caetano é sentir o Brasil mais genuíno e mais poético. Um monstro, como lhe chamou Teresa Cristina, cantora carioca que o acompanhou neste concerto.
Como segundo motivo, a minha mãe ama o Caetano Veloso mais do que ama o meu pai e queria companhia, e para se poder ter bons pais é preciso ser um bom filho.
E em terceiro, e principalmente, porque no último concerto a que foi sozinha ao Coliseu, para ver Maria Bethânia, irmã de Caetano, a minha mãe começou a protestar com o homem do som, que estava a tapar a sua visão da cantora com os seus movimentos de dança, e que com a confusão toda acabou por deixar o som do microfone da Bethânia ir abaixo, para grande desagrado desta que o manifestou a todo o público, e todo este evento terá provavelmente acabado no despedimento do pobre homem do som que estava apenas a curtir. Pareceu-me bem, portanto, acompanhá-la desta vez.
A primeira parte do concerto foi então a cargo de Teresa Cristina, que teve apenas como companhia um guitarrista acústico, Carlinhos Sete Cordas de sua graça. Um homem negro, de alma aberta, cativou com o seu imutável sorriso, um sorriso que transpirava o Brasil. Era assim que Carmen Miranda dançava, era assim que Ronaldinho jogava. Um grande talento, daqueles que sentem o que tocam e tocam o que sentem, mas que daí não conseguem retirar senão júbilo. Teresa embalou-nos no samba e na bossa nova, entre a sua voz elegante, expressiva e carismática e os solos de Carlinhos.
Por fim, Teresa apresentou-nos Caetano de forma comovida, manifestou a sua adulação, referiu a influência do seu ídolo, chamou-lhe "artista fenomenal", "generoso", "elegante" e não se coibiu de sussurrar "dizem que ele é foda", que é uma expressão pode significar muitas coisas, e eu revejo-me numa delas, mas não foi dessa que o público se riu.
Caetano entrou, sentou-se e contou-nos a sua história. Com os efeitos de luz celeste e fumos brancos, Caetano estava etéreo. Foi nesse firmamento que se cantou a depressão,
Todo o dia é o mesmo dia/A vida é tão tacanha/Nada novo sob o sol/Tem que se esconder no escuro/Quem na luz se banha/Por debaixo do lençol, 
o amor,
Luz das acácias/ Você é mãe do sol/ A sua coisa é toda tão certa/ Beleza esperta/ Você me deixa a rua deserta/ Quando atravessa/ E não olha pra trás
o resignado coração partido,
Mas não tem revolta não/ Eu só quero que você se encontre/ Saudade até que é bom/ É melhor que caminhar vazio/ A esperança é um dom/ Que eu tenho em mim, eu tenho sim,
tudo com um cativante tom optimista de felicidade inevitável. Há beleza nas coisas más.
Cantou os tempos da ditadura militar no idos anos 60. Cantou Tropicália, a magnum opus do movimento tropicalista, uma transformação total no cenário cultural brasileiro da altura. Cantou Tigresa, que teve como musa a actriz Sónia Braga, a Gabriela da novela, que parece que depois lhe partiu o coração na vida real. Pôs todas as mulheres e alguns maridos envergonhados a cantar o Leãozinho.
Era só ele, intimista, a mostrar-nos o que ele é, o que ele foi nos últimos cinquenta anos. Só ele e o seu violão, que faz tanto parte de si como os seus próprios dedos. Talento nada tem a ver com complexidade. Acabaram a juntar-se os três, Carlinhos, Caetano e Teresa, num final memorável.
Depois de três encores de aplausos infindáveis, saí a trautear. Senti-me a deixar uma sauna musical, feliz e purificado. Em casa, dou por mim de violão no regaço, a mão esquerda com o acorde em sétima, a mão direita a tentar imitar o ritmo da bossa nova, e desejando possuir o sotaque com açúcar que me leve ao sítio onde Caetano consegue ir. Vou continuar a tentar, porque nesse sítio está tudo certo. Tudo certo como dois e dois são cinco.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Não há cravos na Venezuela

25 de Abril, ano após ano, agradecemos a liberdade a quem odeia a liberdade. O PCP sobrevive de uma herança que reclama para si. Apropriou-se de tal forma desses valores que parecem confundir-se. Por isso mesmo pode sair impune de defender regimes que atacam os valores que embandeiram. O exemplo norte-coreano é clássico e caricatural. Sabemos agora que estão sozinhos na aprovação do regime opressor de Maduro na Venezuela, enquanto celebram os seus patrióticos feitos na nossa liberdade.
Certo é que PSD e CDS também ousaram ser contra o voto de condenação pela prisão dos activistas angolanos. Podemos levantar a questão: é mais legítimo compactuar com regimes criminosos e déspotas por interesse político ou económico do que por ideologia? Maquiavel acena-me que sim do século XVI. Eu vou apenas afirmar que, se a ideologia são valores, esta desaparece sem eles.
Apresentam-nos o populismo como um perigo para a democracia, e consequentemente para a liberdade. Chavez era um paradigmático populista. O seu herdeiro vai seguindo esse populismo, não na versão carismática de proximidade e identificação com o povo, mas ao culpar a elite económica mundial e os agentes capitalistas pelo falhanço económico e social do seu governo.
Chamemos-lhe pós-verdade, narrativas, perspectivas. Por exemplo, colocada a questão "a que se deve a escassez de alimentos e medicamentos na Venezuela?", podemos olhar para o regime como vítima da descida do preço do petróleo, responsável por 96% da economia venezuelana. Se o fizermos, deixamo-nos levar pela teoria das ingerências externas e verborreia anti-capitalista. Embarcar nisto é ignorar um pequeno facto: sem capitalismo, o petróleo é água suja que só serve para munir de gasolina os pirómanos.
Podemos, como alternativa, observar que a obsessão com os ataques à propriedade privada levou a constantes expropriações estatais. Podemos culpar a corrupção que assola o sistema público venezuelano. As chamadas missões bolivarianas de Chavez fizeram aumentar exponencialmente a dívida pública. E podemos olhar para o crescendo de criminalidade como consequência de um estado de impotência, de desespero. Como sobrevivência.
De cravo na lapela, comunistas dão-nos lições de liberdade. De quão gratos devemos estar pelos seus antepassados. Mandam todos respeitar a democracia e a separação de poderes. Na Venezuela, o duelo entre regime e oposição tranformou-se numa guerra entre o poder judicial e o legislativo. Aqui que se lixe Montesquieu.
Ah, e um pormenor que é importante de referir: Maduro é louco como uma cabra. Não é ideologicamente louco, é mesmo patológico. Nem sou eu que o digo, é o presidente do Uruguai. Não é caso para menos. Maduro viu a cara do Chavez numas obras. Sugeriu uma medida de poupança de energia que consiste nas mulheres deixarem de usar secador de cabelo, dizendo até que ficam melhor quando só passam os dedos pelo cabelo e deixam secar ao natural. Cria milícias de civis. Sou um optimista, mas se razões políticas e humanas não são suficientes para condenar este homem, insanidade poderia ser.
Festeja-se a revolução, proliferam elogios às liberdades conquistadas, aos direitos adquiridos, aos chamados valores de Abril, que, ironicamente, a esquerda trata como sua propriedade privada. Hoje, 26, o sol raiou com silêncio. Chavez não foi Salazar, Maduro não é Américo Thomaz. E a luta de um povo sem voz e sem condições básicas de vida, munido de pedras e paus, contra um regime socialista asfixiante não tem a mesma honra de um grupo de militares. A hipocrisia é quem mais ordena.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Macron: o triunfo do extremismo centrista

Até Mark Twain ficaria surpreendido com o exagero com que foi anunciada a morte do centro político. Todos ouvimos a história: a crise financeira, a austeridade, a perversão corrupta da classe política, os choques culturais e sociais da globalização e o terrorismo jihadista fizeram a sociedade civil questionar o sistema partidário e a fazer uso das suas armas democráticas para romper com o mainstream.
É pertinente não confundir a falência dos partidos tradicionais de centro-esquerda e centro-direita com a extremização do eleitorado. Desde logo porque não é só o centro que se está a esbater, são antes todas as organizações partidárias. Trump candidatou-se pelo Partido Republicano mas, na prática, foi um independente que se marimbou para o reaganismo e que insultou tudo e todos no seu partido, formando assim internamente mais opositores do que apoiantes. Macron foi a votos suportado por uma plataforma imberbe na paisagem política gaulesa. A população não está só a castigar o centro político, está a punir toda a oligarquia partidária.
O centro-direita começou a cair com a identificação com a austeridade, que pela Europa fora causou graves fissuras entre países do norte e do sul, entre ricos e pobres, entre culturas de trabalho protestantes e católicas, entre europeístas e eurocépticos. O centro-esquerda, perdido nesta polarização, não soube encontrar o seu equilíbrio entre compactuar com o projecto europeu e embarcar na retórica anti-capital, estratégia que só iria favorecer os partidos mais à esquerda, que ao menos são originais e não socialistas dos trezentos.
Dito isto, observemos Emmanuel Macron, um homem tão previsível quanto incongruente. Ministro de Holland, prontificou-se a despir a bata ensaguentada com que aplicou a sua cirurgia à economia francesa, para que não fosse identificado com a lei à qual deu nome. Não se compromete em questões essenciais, já foi chamado de "zebra política", de "pisca-pisca", a representação paradigmática do leito de morte das ideologias. Ver este senhor lembra-me diaramente este sketch. Está, como Zé Diogo Quintela com uma máscara de ski, "mesmo, mesmo, mesmo ali no meiinho".
Porque é que Macron ganhou esta primeira volta, ainda que por escassa margem? Dantes falava-se em partidos catch-all, ou aquilo a que os americanos chamam de big tent: plataformas partidárias que aglomerassem em si diferentes pontos de vista. Com a crise partidária, surgiram os candidatos catch-all. Esses candidatos podem ser populistas que, através de um diagnóstico (a cura é outra história) mais ou menos certeiro, falam ao eleitorado perdido e esquecido. Ou podem, por outro lado, ser Macron: nenhum dos sectores se identifica especialmente com o seu incógnito programa político. Mas cada vez mais são valores, e não políticas, que vão a votos.
Em termos muito gerais, teremos na segunda volta em França uma contenda semelhante ao que se passou nas eleições norte-americanas. Há diferenças relevantes, desde logo logísticas, com diferentes sistemas eleitorais, mas também diferentes cenários demográficos, problemas sociais distintos e heranças políticas díspares. E, para não falhar à justeza, Hillary não é tão vazia como Emmanuel, Emmanuel não é tão politicamente inábil como Hillary, Marine não é tão burra como Donald e Donald não é tão convicto como Marine.
Irão, porém, defrontar-se duas visões antagónicas do mundo: uma que defende a ordem liberal ocidental, as instituições internacionais, abraça o esbatamento de fronteiras e a manutenção da elite política e financeira internacional; e uma outra, de contra-poder, que se assume como nacionalista, xenófoba, autoritária, proteccionista e que vê com melhores olhos uma aproximação ao Kremlin do que a manutenção das instituições e políticas actuais.
Não é só De Gaulle que se inquieta na sua campa, porque não é apenas a República Francesa que está em cheque. Está Monet, Adenauer e Schuman. Está uma visão homogénea da cultura europeia, de solidariedade e progresso, liberal e social-democrata, que nos regeu nos últimos 60 anos.
A culpa não está, repito, na polarização do eleitorado. Isso é uma consequência, nunca uma causa. O falhanço do sistema mundial está na classe política e financeira que a representou. Refastelada à sombra da ilusão da prosperidade, e assolada por um crise moral e identitária, refugiou-se na demagogia onde, já se sabe, o populismo xenófobo joga em casa. Conseguiram que os defeitos do sistema democrático voltassem à tona, tirando-nos o chão em que todos nos suportávamos. Trump é clinicamente oligofrénico, Le Pen é fascismo embelezado por filtros do instagram. Mas estávamos a precisar desta chapada populista. Lamento muito, mas é bem feita.