segunda-feira, 24 de abril de 2017

Macron: o triunfo do extremismo centrista

Até Mark Twain ficaria surpreendido com o exagero com que foi anunciada a morte do centro político. Todos ouvimos a história: a crise financeira, a austeridade, a perversão corrupta da classe política, os choques culturais e sociais da globalização e o terrorismo jihadista fizeram a sociedade civil questionar o sistema partidário e a fazer uso das suas armas democráticas para romper com o mainstream.
É pertinente não confundir a falência dos partidos tradicionais de centro-esquerda e centro-direita com a extremização do eleitorado. Desde logo porque não é só o centro que se está a esbater, são antes todas as organizações partidárias. Trump candidatou-se pelo Partido Republicano mas, na prática, foi um independente que se marimbou para o reaganismo e que insultou tudo e todos no seu partido, formando assim internamente mais opositores do que apoiantes. Macron foi a votos suportado por uma plataforma imberbe na paisagem política gaulesa. A população não está só a castigar o centro político, está a punir toda a oligarquia partidária.
O centro-direita começou a cair com a identificação com a austeridade, que pela Europa fora causou graves fissuras entre países do norte e do sul, entre ricos e pobres, entre culturas de trabalho protestantes e católicas, entre europeístas e eurocépticos. O centro-esquerda, perdido nesta polarização, não soube encontrar o seu equilíbrio entre compactuar com o projecto europeu e embarcar na retórica anti-capital, estratégia que só iria favorecer os partidos mais à esquerda, que ao menos são originais e não socialistas dos trezentos.
Dito isto, observemos Emmanuel Macron, um homem tão previsível quanto incongruente. Ministro de Holland, prontificou-se a despir a bata ensaguentada com que aplicou a sua cirurgia à economia francesa, para que não fosse identificado com a lei à qual deu nome. Não se compromete em questões essenciais, já foi chamado de "zebra política", de "pisca-pisca", a representação paradigmática do leito de morte das ideologias. Ver este senhor lembra-me diaramente este sketch. Está, como Zé Diogo Quintela com uma máscara de ski, "mesmo, mesmo, mesmo ali no meiinho".
Porque é que Macron ganhou esta primeira volta, ainda que por escassa margem? Dantes falava-se em partidos catch-all, ou aquilo a que os americanos chamam de big tent: plataformas partidárias que aglomerassem em si diferentes pontos de vista. Com a crise partidária, surgiram os candidatos catch-all. Esses candidatos podem ser populistas que, através de um diagnóstico (a cura é outra história) mais ou menos certeiro, falam ao eleitorado perdido e esquecido. Ou podem, por outro lado, ser Macron: nenhum dos sectores se identifica especialmente com o seu incógnito programa político. Mas cada vez mais são valores, e não políticas, que vão a votos.
Em termos muito gerais, teremos na segunda volta em França uma contenda semelhante ao que se passou nas eleições norte-americanas. Há diferenças relevantes, desde logo logísticas, com diferentes sistemas eleitorais, mas também diferentes cenários demográficos, problemas sociais distintos e heranças políticas díspares. E, para não falhar à justeza, Hillary não é tão vazia como Emmanuel, Emmanuel não é tão politicamente inábil como Hillary, Marine não é tão burra como Donald e Donald não é tão convicto como Marine.
Irão, porém, defrontar-se duas visões antagónicas do mundo: uma que defende a ordem liberal ocidental, as instituições internacionais, abraça o esbatamento de fronteiras e a manutenção da elite política e financeira internacional; e uma outra, de contra-poder, que se assume como nacionalista, xenófoba, autoritária, proteccionista e que vê com melhores olhos uma aproximação ao Kremlin do que a manutenção das instituições e políticas actuais.
Não é só De Gaulle que se inquieta na sua campa, porque não é apenas a República Francesa que está em cheque. Está Monet, Adenauer e Schuman. Está uma visão homogénea da cultura europeia, de solidariedade e progresso, liberal e social-democrata, que nos regeu nos últimos 60 anos.
A culpa não está, repito, na polarização do eleitorado. Isso é uma consequência, nunca uma causa. O falhanço do sistema mundial está na classe política e financeira que a representou. Refastelada à sombra da ilusão da prosperidade, e assolada por um crise moral e identitária, refugiou-se na demagogia onde, já se sabe, o populismo xenófobo joga em casa. Conseguiram que os defeitos do sistema democrático voltassem à tona, tirando-nos o chão em que todos nos suportávamos. Trump é clinicamente oligofrénico, Le Pen é fascismo embelezado por filtros do instagram. Mas estávamos a precisar desta chapada populista. Lamento muito, mas é bem feita.

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