domingo, 14 de maio de 2017

Salva a dor

Antes de mais, há questões oportunas a colocar: será Malato a apresentar o Eurovisão Lisboa 2018? E se sim, onde se esconderá então, envergonhado, este nosso empertigado patriotismo?
Teria Salvador ganho sem o man bun, o olhar impoluto e os esdrúxulos trejeitos de artista, que o meu pai sagazmente classificou de canguru epilético?
Se Salvador soltar o cabelo, este fica para trás ou transformará a sua cara na de um lhasa apso?
Deverei considerar-me homofóbico por sentir repulsa pelos dois gregos a esfregarem-se molhados e em tronco nu?
Questões que aqui planto para germinarem.
De resto, já tudo se disse ad nauseam sobre o Salvador. Há quem não tenha espaço no peito para tamanho fascínio. Há quem genuinamente não goste da música, uma opinião tão legítima como o seu contrário. Há indiferença, há invenja, há vaidade. Há quem critique a parolice do orgulho lusitano e há quem diga que é tudo política. A irmã do Markl até escreveu um texto a criticar comentários anti-Salvador nas redes sociais. Coitada, perdida vinte e quatro horas online, não pode comentar o mundo que não seja o digitado.
Aqui deixo a minha humilde e irrelevante consideração: estou-me positivamente cagando para o festival. Tenho uma paixão vulcânica pela arte de criar música, mas tenho um gosto diferente. E é precisamente esse contraste que me fez, a mim e a muitos, apreciar particularmente a vitória do Salvador. Dificilmente se poderá ser anti-Festival da Canção e anti-Salvador, a não ser que se seja anti-música, algo que me parece humanamente impossível. Ao contrário do Salvador, não tenho problemas com fogos de artifício nem efeitos especiais. Algumas das minhas bandas favoritas dão concertos extravagantes e pirotécnicos. O problema é mesmo a música.
Perdido num turbilhão de batidas cefaleicas, efeitos ofuscantes, arte pós-ultra-neo moderna, melodias contrafeitas e apresentações exóticas, Salvador fez jus ao nome. Foi despretensioso e afável. Apresentou a graciosa composição da irmã como um feitiço, acompanhado por um notável arranjo de cordas. Foi um oásis e mereceu cada um dos aplausos.
Satisfaz-me portanto, sobretudo, ter ganho a melhor música. A única música, arrisco. Outros motivos de interesse houve, ainda que escassos: os moldavos levaram um divertido riff de saxofone, houve primatas e cavalos e houve o inebriante decote de Kasia Mós, a cantora polaca cujo nome decorei por pura curiosidade empírica. Amar pelos dois é simplesmente demasiado bonita para não se destacar como Newton numa aula de educação especial. Se tívessemos levado o Agir e ele tivesse ganho, eu e muita gente teríamos ignorado o fenómeno. Porque há várias formas de declarar o amor: pode-se declamar brilhante poesia (Ela parte-me o pescoço/ Que ela tem aquele corpo que eu digo/ What the fuck and so what, so what, so what/ Eu não tenho culpa que ela tenha aquele butt). Ou pode fazer-se arte. Ganhou um artista, que por acaso é português. (Aqui uma palavra para Luísa Sobral, a nossa Diana Krall, que já merecia consagração).
A meu ver, estes festejos nacionalistas não são criticáveis por si só. É condenável que muitos dos que festejam a vitória da verdadeira música ouçam diaramente o tipo de música plastificada que dizem ter sido derrotada. Essa hipocrisia é verdadeira e deve ser referida. Mas o orgulho na vitória do Salvador, mesmo que de um ponto de vista meramente nacionalista e não musical, é legítimo e saúda-se. E explico porquê.
Abel Xavier inaugurou a extraordinária decomposição morfológica que titula este texto, com a já lendária tirada do treina-a-dor. Etimologicamente, errou: felizmente o elevador não aleija nada e infelizmente um aspirador não é antidepressivo. Mas neste caso esta formulação é pertinente. São estas alegrias que nos salvam o patriotismo, que anda frequentemente perdido entre o derrotismo, o triste fado e a falta de dinheiro. Celebrar esta vitória é revigorante, ainda que seja num contexto que em geral seja ignorado.
Do Europeu disse-se o mesmo: gente que nunca liga a futebol saiu à rua em euforia desmedida. Tenho dificuldades em perceber o problema disto. Fenómenos como o Salvador e o Éder, ao contrário do que às vezes se diz, não são fugazes e insignificantes exaltações da pátria. São episódios prodigiosos de experiência colectiva. É uma memória que vamos sempre partilhar. É uma vaidade comunitária, uma glória comum. Querer ver mal nisso é ser contra o próprio conceito de nação.
Mais do que isso: Éder e Salvador são o protótipo da desembaraçante criatividade lusitana. Seja a criatividade de imaginar um remate do meio da rua, seja a criativiade de pôr o mundo a trautear em português, seja a criatividade de inventar uma desculpa para entregar o relatório para a semana, a criatividade de desenrascar um aceitável jantar com pouco mais que uma lata de atum e uma mini, ou a criatividade de falar portunhol. Fosse o Salvador nortenho e, em vez de mandar um abraço para o nosso país na actuação final, teria gritado o "Portugal, caralho!" que merece ecoar pela Europa fora.

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