segunda-feira, 19 de junho de 2017

Apocalipse

"The planet isn't going anywhere. We are. Pack your shit, folks, we're going away."
George Carlin

A proximidade física é uma lupa emocional, tudo amplia nas mais colossais angústias. Acampei há uns anos perto da zona afectada. Num carro com duas amigas, percorremos uma estrada em noite escura à procura da vila mais próxima, ladeados por uma indefinida imensidão de árvores. Perante a descrição da carnificina na estrada da morte, fica difícil fechar os olhos e não ter pesadelos despertos de termos sido nós a atravessar os portões de Hades. Não é um experiência exclusivamente visual, ouvem-se urros alucinados como últimos suspiros e o crepitar do tsunami flamejante, um calor vulcânico derrete a pele e o odor é entre o porco assado, a putrefacção e a doçura, assim é o cheiro da carne humana. Acobardo-me ao lembrar-me de como Dante descreveu um dos círculos do seu Inferno,
"um areal cujo solo toda e qualquer planta rejeita"
há famílias abraçadas à espera de morrer,
"multidões de almas nuas que choravam miseravelmente"
um furacão traz o fogo e somos todos apanhados
 "sobre todo o areal, choviam grossos flocos de fogo, (...) assim tombava o fogo eterno, fazendo a areia arder, como a isca debaixo do fusil, redobrando o tormento."
Os locais garantem todos que foi uma questão de segundos entre a cortina de fogo no horizonte e o fim do mundo. Uma senhora tenta especificar quantos, dentro da percepção temporal que a agonia permite: quinze a vinte. Aldeias foram devoradas por indomáveis línguas de fogo, o seu sustento em gado e hortas dizimado e as chamas progrediram a sua rota voraz, indiferentes ao seu rasto sinistro.
A contemplação temorosa destes cataclismos só é comparável à destruição biblíca da humanidade. Há uma razão para o Deus do antigo Testamento ser tão cruel: Deus era a natureza, brutal e inexplicada. A natureza dá e tira-nos vida. Água e fogo dão-nos e tiram-nos tudo. Era esta a relação dos antigos com o Deus de Abraão, mas não tem de ser a nossa com a natureza. Porque esta não é vingativa e carente como Deus; é antes profundamente indiferente à nossa existência. Nenhuma dessas entidades deve ser venerada.
"Quando a natureza se zanga, é muito difícil o homem pará-la". As palavras são de Jaime Marta Soares, presidente da Liga dos Bombeiros. É a perspectiva de um homem que passou a vida a travar uma batalha de David e Golias contra a fúria titânica dos elementos naturais. Aos ouvidos da população, é um encolher de ombros digno de uma tribo da Amazónia que atire flechas à anaconda gigante a que nós chamamos comboio.
Não entendo que reverência é esta. Não entendo porque nos achamos demasiado pequenos para a natureza. Nunca me esquecerei da frase do filósofo Julian Baggini, que a propósito do tsunami que atingiu a costa do Japão em 2011 disse sobre Gaia, a deusa grega que personifica a Terra: "We should respect her as a fighter respects the strength and skills of an opponent, not as a pupil respects the knowledge and wisdom of her master."
Entendamo-nos: o homem é mais importante que a natureza. Sem consciências humanas no planeta, não há sequer ninguém para dizer se a natureza é boa ou má. Simplesmente é. Nesta salgalhada misturam-se dois conceitos muito distintos: domar a natureza e domar as suas leis. A natureza já mostrou não poder ser domesticada; mas foi ao estudarmos e gerirmos as suas leis que a ciência levou a humanidade a este patamar de progresso e segurança. No meio da sofreguidão de salvar o planeta da acção humana, não nos podemos esquecer de salvar a humanidade da acção planetária.
Acordo suado e assustado e sinto-me envergonhado com o medo. Ligo para os vários números de apoio. Creio ter sido a primeira vez que fui movido internamente para contribuir como posso para uma causa deste género. Não me gabo, pelo contrário, estou cheio de vergonha, porque fomos todos tarde demais e porque não sei se sou movido por empatia ou egoísmo. Acho que foi o meu pesadelo que me impeliu, não o pesadelo deles. Quando se fala em impotência, expressamo-nos postumamente, temos vontade de ajudar e não podemos. Sejamos optimistas e consideremos que é neste sentimento que começa a solução.
O número imparável de vítimas mortais pode atingir os três digitos. Ainda há dezenas de casas isoladas espalhadas pelo terreno de cujo os habitantes não se tem informação. É infrutífero, nestas alturas, dizerem-nos que é momento para usar da razão e não da emoção. Não queremos esperar mais pelos especialistas, por estudos, por merda nenhuma. São todos génios impotentes que querem proteger as florestas abolindo os guardas florestais juntos das populações e que combatem a desertificação do interior não oferencendo condições básicas a quem lá fica.
As pessoas querem respostas, mas nunca podem perdoar isto. O maior problema da dimensão do Estado em Portugal é esperarmos o retorno que nunca vem. Comunidades inteiras que contribuem com o suor em incontáveis e chorudos impostos e que depois têm de combater a natureza abandonados à sua sorte. ´
Há um grande plano de prevenção e combate aos incêndios florestais parado numa gaveta há mais de uma década à espera de um cataclismo que justificasse a canseira de o aplicar. Estamos a falar de um problema anual e previsível e estamos a falar de soluções tão simples e baratas como bunkers ou perímetros de segurança para estradas e localidades. Dinheiro, burocracia ou falta de vontade, seja qual for a justificação para o plano não ser devidamente aplicado, verdadeira ou oficial, é uma monumental vergonha para aqueles a quem depositamos o nosso bem-estar. Desengane-se quem acha que faz diferença se são os burros da PáF ou os ilusionistas da geringoça, se é o silêncio cadavérico de Cavaco ou os beijos molhados de Marcelo. O fogo continua a lavrar. Confiar no poder político a defesa do Portugal rural é permitir que continue a cheirar a carne humana. A sociedade civil sabe o que é preciso fazer. Façamos.

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